Voltaire, Rousseau e nós

Postado em jul. de 2018

História | Filosofia

Voltaire, Rousseau e nós

De um lado, a manipulação das elites. De outro, ​a energia das bases populares. Em fala exclusiva ao Fronteiras, Robert Darnton explica como as diferenças entre Voltaire e Rousseau abrangem diversos aspectos da natureza humana.


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Por onde começa a transformação da sociedade: pelo povo ou pelas elites? Uma questão que pertence à esfera do saber histórico, pois este dilema ainda tão atual surgia na rivalidade de duas grandes mentes do século XVIII: Rousseau e Voltaire.

Em fala exclusiva ao Fronteiras, o historiador norte-americano Robert Darnton analisa a relação entre estes filósofos e explica como suas diferentes opiniões abrangem muitos aspectos da natureza humana. Leia abaixo:

Há uma carta famosa de Voltaire para Rousseau, na qual ele diz: “Monsieur, li seu último livro; ele faz com que eu deseje ficar de quatro, feito um animal". Ele debocha de Rousseau, como se ele fosse primitivo. E Rousseau responde: “Monsieur, eu o odeio".

Havia um contraste entre os dois e esse contraste, creio, hoje é importante para compreender por que Voltaire tinha uma estratégia para mudar a sociedade. A estratégia era trabalhar de cima para baixo. Ele conhecia o mundo da elite, nasceu no século 17, em 1694, sob o reino de Louis XIV, em outro mundo.

E ele acreditava que a sociedade era hierárquica, que mesmo os trabalhadores não deveriam aprender a ler porque alguém, ele disse, tinha que arar os campos. Ele se dirigiu à elite e soube como manipular o mundo do salon, das academias.

Ele era um cortesão em Versalhes, conhecia o rei e também a amante do rei, Madame de Pompadour. Ele, então, manipulou esse mundo, mas se excedeu e teve de desaparecer e passar os últimos anos de sua vida primeiro em Berlim, depois entre a França e a Suíça, escrevendo panfletos, sempre atacando a injustiça, mas atacando-a de cima para baixo, entre as pessoas no poder.

Rousseau é o oposto: veio de uma família pobre, seu pai era um artesão, um relojoeiro, e Rousseau expressava uma profunda discordância em relação a Voltaire. Ele pensava que se deve trabalhar de baixo para cima, e era nas próprias pessoas que ele se inspirava.

Imaginava um mundo democrático onde, em vez do teatro se vissem demonstrações populares, um tipo de teatro do povo e procissões e festivais. Todos seriam atores e espectadores ao mesmo tempo. Isso, em última análise, era uma espécie de política.

Rousseau tinha a energia das bases populares da sociedade. E creio que, quando Rousseau rompeu com os encyclopédistes, os autores da grande Encyclopédie, que é o livro central do Iluminismo, rompeu ao atacar a cultura da elite.

Quando Voltaire descreve a sociedade utópica de Eldorado, e ele está pensando nesta parte do mundo, ele insiste que ela é, acima de tudo, uma société polie. Ele descreve como as pessoas interagem de forma educada. O que ele quer dizer é que há respeito pelo outro e há uma espécie de douceur, de gentileza no modo como as pessoas se tratam que é civilizado.

A civilização ideal é o que Norbert Elias chama de “processo civilizatório", um processo que doma as paixões violentas dos indivíduos para que a vida social seja possível. E isso era importante porque os nobres, por exemplo, no século 17, eram uns brutos. Pensamos neles como grands-seigneurs e assim por diante. A noção dos bons modos franceses é recente, é uma noção do século 18 iniciada no século 17. Antes disso, eles eram uns brutos que queriam brigar o tempo todo.

O processo civilizatório muda toda a natureza das relações sociais. E isso, de uma maneira, abre o caminho para o poder, para aqueles que nascem nas partes mais baixas da sociedade, mas aprenderam o código das boas maneiras a fim de progredir. Foi o que Voltaire fez.

Afinal, ele não era um seigneur, seu pai tinha um trabalho numa das cortes, mas não era um aristocrata. Porém, Voltaire tinha talento para divertir as pessoas, para as relações sociais. E, com o tempo, chegou ao topo da corte de Louis XV, empregando o código das boas maneiras.

Mas, é claro, para Rousseau isso era terrível, porque era um código especificamente relacionado à aristocracia e à Igreja. Rousseau odiava a ideia dos bons modos; em vez disso, queria um modo popular direto de interação social.

O lema de Voltaire, em francês, era "il faut mettre les rieurs de notre côté", "devemos ter o sorriso do nosso lado". Ele usou o sorriso como uma arma contra o preconceito. E, por preconceito, ele quis dizer a Igreja Católica, o sistema legal que era corrupto e, de certa forma,o sistema político.

Com Rousseau, é muito mais radical, porque ele defendia a completa democratização do sistema político. O que me espanta, quando leio Rousseau, é a forma com que ele criou uma nova relação entre escritor e leitor. Sei disso porque estudei todas as cartas que ele recebeu.

As pessoas escreviam a ele dizendo: "Monsieur, o senhor tocou meu coração.", "Diga o que vai acontecer com os personagens do livro." Porque as pessoas pensavam que personagens como Saint Priest e Julie eram reais e os levavam para suas vidas, quase como nas novelas hoje em dia. Mas, na época, era algo novo.

Vê-se a mesma coisa acontecendo na Inglaterra e na Alemanha com os grandes novelistas, como Richardson na Inglaterra, Goethe na Alemanha, Rousseau na França. Eles criam uma nova espécie de relação entre leitor e escritor, o que produz mais poder, de forma que as pessoas se comovem depois de terem sido mobilizadas através do sorriso por Voltaire.

O movimento de Voltaire para Rousseau abrange muitos aspectos da natureza humana e os une pela causa em comum do Iluminismo.

ASSISTA: de um lado, a manipulação das elites. De outro, a energia das bases populares. A partir de uma famosa carta, escrita por Voltaire a Rousseau, Robert Darnton prossegue o debate sobre a relação entre estas duas grandes mentes.

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Robert Darnton

Robert Darnton

Historiador cultural norte-americano

Historiador cultural norte-americano, diretor da Biblioteca de Harvard.
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