Das patologias histéricas às narcísicas: o legado de Freud para o mundo contemporâneo

Postado em mar. de 2017

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Das patologias histéricas às narcísicas: o legado de Freud para o mundo contemporâneo

Acervo histórico que embasou pesquisa da biografia de Freud por Elisabeth Roudinesco está aberto ao público. Em entrevista, ela fala sobre suas descobertas através de milhares de documentos.


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Uma das maiores especialistas no mundo em história da psicanálise, Elisabeth Roudinesco veio ao Brasil, a convite do Fronteiras do Pensamento, para participar do projeto e lançar seu livro Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo.

Esta biografia do pai da psicanálise, lançada por aqui pela Zahar, é considerada a obra definitiva sobre a vida e o trabalho do austríaco. Para compor o livro, a historiadora francesa se debruçou sobre milhares de arquivos ligados a Freud e às relações que ele manteve com seus mestres e discípulos, familiares e amigos, além dos pacientes. Estes documentos foram abertos ao público pela Biblioteca do Congresso dos EUA em fevereiro de 2017.

Pintura a óleo Freud

Dentre os mais de 20 mil itens do acervo, estão centenas de entrevistas, cartas, fotografias, transcrições e até pinturas em altíssima resolução (ex: pintura a óleo por Wilhelm Victor Kraus, circa de 1936). Não deixe de conferir.

Acesse SIGMUND FREUD PAPERS

Em entrevista ao programa Diálogos com Mario Sergio Conti, Roudinesco defende a tese de que as ideias de Freud estão vivas, mas precisam ser entendidas dentro do contexto em que foram criadas: a sociedade europeia do final do século 19 e início do século 20. Confira abaixo a transcrição. Clique aqui para assistir à introdução da entrevista (aberta a todos) e ao programa na íntegra (exclusivo para assinantes):

Por que uma nova biografia de Freud, depois dos livros de Ernest Jones e de Peter Gay 25 anos atrás?
Senti que era necessário. Para mim, em primeiro lugar, porque eu já havia escrito sobre a minha especialidade, a França e seus ensaios. E sempre queremos voltar aos fundadores. Então, eu queria falar de Freud de uma forma diferente.

Além do mais, a última biografia foi publicada há 25 anos. Peter Gay foi o primeiro a ter acesso a quase todos os arquivos abertos da Biblioteca do Congresso dos EUA. Eu queria abordar Freud de outra forma.

Freud é diferente para mim. Ele é muito mais vienense, muito mais enraizado na sua época. Temos todos os documentos sobre a família dele. Eu queria mostrar a vida privada dele de forma mais completa.

Você classifica o livro como uma psicobiografia, uma síntese, como você classifica a obra?
É um livro de História.

Mas também de uma analista...
Justamente. Por isso mesmo eu não quis diferenciar Freud de outros pensadores. Escrevi como se ele não fosse especificamente um psicanalista. Por isso eu não quis aplicar nada da psicanálise para mostrar que ele era, bem, era o fundador da psicanálise e é claro que ela estará presente. Mas sim como um objeto histórico. Nesse sentido, eu me encaixo mais na linha de Peter Gay que não era psicanalista e fez uma biografia clássica.

Mas, meu verdadeiro modelo foi o historiador Jacques Le Goff. Ele me serviu de apoio. Sua biografia de São Luís é realmente extraordinária, pois ele mostra diversas facetas e momentos. Eu fiz a mesma coisa, porque há tantos livros sobre Freud, que eu precisava fazer escolhas.

Havia a juventude, Freud e as mulheres, Freud e a política, Freud e a morte, Freud e sua família etc. Não dava para fazer três volumes, então, tivemos que escolher.

Você trata Freud como um pensador, um líder da psicanálise, um homem de seu tempo, um intelectual, o que ele é para você?
Eu o vejo ao mesmo tempo como um sábio e como um homem de espírito guerreiro. Isto é, ele estava convencido, com razão, aliás, de que havia realizado uma revolução simbólica. Ele abriu caminho para o conhecimento do inconsciente. O inconsciente já existia, já havia sido explorado. Mas ele sabia da importância de seu novo método de conhecer a si mesmo. Ele se autoproclamava um grande pensador. Mas, ele não era megalomaníaco. Ele não era louco.

Ele tem esse lado de líder guerreiro porque ele cria um movimento com discípulos, tudo isso na fronteira entre os séculos 19 e 20. E ele é contemporâneo do socialismo, do sionismo, do feminismo. Ele é contemporâneo dos movimentos de emancipação. Isso é significativo. Ele não tinha necessariamente consciência disso, mas ele é contemporâneo dos que sonhavam com outra vida, que buscavam a abordagem de outros aspectos da vida.

Paradoxalmente, ele era um conservador...
Insisto que ele era um conservador esclarecido, não um reacionário. Um conservador esclarecido como Stefan Zweig. Como muitos vienenses. É paradoxal. Freud trabalhou com social-democratas em Viena. Ele apoiava a emancipação das mulheres, o progresso, a despenalização da homossexualidade, era contra a pena de morte. Mas, ao mesmo tempo, ele não era favorável à revolução comunista. Ele achava isso uma ilusão. Seu regime favorito era a Monarquia Constitucional, o que é normal, afinal, ele nasceu no Império Austro-Húngaro.

Ele era um homem do século 19. Eu diria que a característica dessa revolução simbólica foi buscar na Antiguidade greco-romana, nos mitos... Ele se reapropriou dos mitos em um mundo que não queria mais saber deles. Em outras palavras, ele reativou os velhos mitos das tragédias de Shakespeare, as tragédias de Sófocles, do mundo grego. E havia uma coisa muito vienense: a ideia do tempo imóvel. Ele vai buscar nesse tempo imemorial, que é o inconsciente, os meios de compreender o sujeito na vida moderna.

Você chegou a descobrir novidades sobre a vida de Freud? Eu detectei algumas no livro. Ele não disse que trazia a peste nos EUA, ele leu Proust... O que seu livro traz de novo?
Com relação a isso, eu acabei com todos os boatos. Ele nunca falou da peste, nunca recomendou a Gestapo, e isso já era um pouco conhecido. O que me interessava menos, porque, agora que os arquivos estão abertos, quase todas as cartas foram publicadas.

Faltam muitas coisas, mas eu me interessei muito pelos detalhes. Ou seja, pelas cartas, depoimentos da época que foram encontrados pelo arquivista Kurt Eissler, que teve a ideia de criar os arquivos de Freud, porque os judeus vienenses que emigraram sabiam que os nazistas estavam destruindo o velho mundo. Era preciso salvar a memória freudiana que é também dos judeus. São os judeus vienenses.

Há muitos detalhes interessantes ali sobre os gostos de Freud. Há muitas entrevistas com gente que o conheceu. É uma mina de ouro. Há entrevistas com Jung que duram horas. Com Jung, com Reich e muitas outras. Há entrevistas com desconhecidos. Há cartas da família de Freud...

Até das paixões dele...?
Também tem todas as paixões, mas esses arquivos não foram abertos. Um próximo estudo poderá analisar os amores de Freud, pois vários vestígios serão encontrados aos poucos. Eu já tinha os arquivos de Marie Bonaparte, obtidos com a biógrafa dela.

Mas será que vai surgir alguma novidade bombástica, alguma coisa que mude radicalmente a visão de Freud? Acho que não, mas detalhes podem ser esclarecidos. Também há muita coisa sobre o câncer dele, sobre o tratamento.

Não é nem uma novidade nem um detalhe, mas é importante e o livro fala disso. A relação dele com o nazismo, a chegada de Hitler, ele não entendeu o que era o fascismo alemão. Ele chegou a se negar a fugir de Viena. E depois as irmãs dele morreram no campo de concentração. Como você explica isso? Um homem tão inteligente...
Eu acho que ele tinha entendido que o nazismo representava a pior destruição possível. Ele entendeu isso em 1933.

Quando os livros dele foram queimados?
Sim, ele vê isso na Alemanha. A Alemanha era o maior polo da psicanálise na Europa. O grande erro dele foi estar convencido de que os austríacos resistiriam ao Anschluss [anexação político-militar da Áustria por parte da Alemanha em 1938]. Ele estava convencido.

Ele viu a destruição da Alemanha, mas achava que a Áustria resistiria. Eu interpreto isso como uma espécie de negação. Ele não queria. Era doloroso demais para ele ver a destruição de seu movimento.

Por outro lado, Freud era antiamericano até os ossos. Ele achava, erroneamente, que, no fundo, o novo mundo não respeitava sua teoria da maneira que ele queria. É verdade que os norte-americanos adaptaram a psicanálise de forma pragmática.

Com a psiquiatria...
Isso mesmo. Mas, ele apostava muito na Inglaterra, que era um pouco diferente. Porém, a ideia da destruição da cultura alemã era insuportável para ele. Ele verdadeiramente achava que Viena resistiria.

Ele acreditava na cultura alemã. Talvez, ele desejasse que a civilização de Goethe resistisse ao nazismo. Não é isso?

Sim. Com certeza. Para ele, era uma tragédia a destruição da tradição da cultura alemã. Daí sua resistência. Acho que isso também explica porque ele aceitou, na Alemanha, que seu discípulo Ernest Jones colaborasse com o regime nazista supostamente para salvar a psicanálise. Mas, depois da Anschluss, ele viu que era o fim. Não era possível continuar. Foi aí que ele aceitou partir.

Outra coisa é que Freud estava gravemente doente. Ele passou a ser devorado pelo câncer no maxilar a partir de 1923. Ele convivia com a ideia da morte.

Ele estava cansado, velho...
Acho que era mais do que isso. Eu me pergunto se ele não queria morrer junto com a psicanálise em seu país. Mas, é claro, quando ele viu a Gestapo prender sua filha e que tudo estava em perigo, ele aceitou partir. Quanto às suas quatro irmãs, elas não obtiveram o visto. Ele não as abandonou. Elas não obtiveram o visto. Era algo muito difícil.

Ele deixou muito dinheiro para elas, mas...
Sim, era uma família muito unida. A ideia era que as irmãs partissem um pouco depois, quando fosse possível. Ele jamais imaginou que, em 1938, a Solução Final aconteceria. E não foi a única família. Os Wittgenstein e vários judeus de Viena foram exterminados porque não puderam emigrar. Eles não tiveram escolha.

Qual é o legado de Freud? O verdadeiro legado de Freud...? Qual é o lugar dele neste mundo perturbador?
Eu vejo que, no mundo inteiro, quanto mais a psicanálise se enraizou, no mundo ocidental pelo menos, mais ela está em recessão. Ela está voltando a ser um assunto privado. Porque a psicanálise foi incorporada pela psiquiatria. Ou seja, para as massas e para os doentes mentais. E também pela ação social, pela atuação da chamada “Psicologia da Criança". A psicanálise ficou mais aberta a outras áreas.

E com a medicalização...
Compreensivelmente, ela colaborou para isso. Ou seja, a partir do surgimento dos antipsicóticos, houve uma ligação útil entre a terapia psicanalítica e o uso dos medicamentos para doentes mentais até 1960.

Nos últimos 40 anos, os medicamentos invadiram tudo, até o campo das neuroses. Até os problemas cotidianos. Há um excesso de medicamentos.

A psicanálise está em recessão porque não é mais usada pela psiquiatria, que é totalmente biológica, e também está em recessão noutro sentido. A psicanálise é uma prática privada, uma terapia de grandes burgueses, que precisam explorar a si mesmos, de intelectuais.

Gente com tempo e com dinheiro.
Sim e isso vai permanecer. As pessoas vão ao analista por conta própria. São os neuróticos.

Mas mesmo a doença mudou, porque, na época de Freud, era a histeria. Agora, é a depressão.
Exatamente.

Há uma epidemia de depressão. Por que isso?
Bom, porque não vivemos mais numa sociedade de frustração. A histeria era a doença das mulheres frustradas, no início do século 20. Mulheres maltratadas, sem liberdade sexual etc. A revolução freudiana também contribuiu para libertar a sexualidade. Isso aconteceria mesmo sem Freud, mas enfim.

A partir dos anos 1960, as patologias mudaram. Surgiram as neuroses narcísicas e não mais as histéricas. E isso está ligado à depressão.

Ou seja, em sociedades em que se tem acesso ao direito à liberdade, à segurança etc, surgiu a depressão, o mal-estar da vida, o fastio consigo mesmo e as patologias narcísicas. O que continua igual são as perversões sexuais e as psicoses.

Então, é preciso ter cuidado quando se fala em epidemia de depressão. Estão contidas, na palavra “depressão", as neuroses histéricas e outras. A terminologia mudou e as paixões também são diferentes. Ainda há muitos neuróticos que precisam de análise, mas, de maneira geral, eles preferem terapias mais curtas, com resultados rápidos e medicamentos.

Eu sempre disse que a psicanálise deve se adaptar à sua época. Em outras palavras, a psicanálise pode fazer o que esses terapeutas fazem. Freud também fazia terapias curtas. Elas duravam seis meses e eram realizadas pessoalmente.

Acho que uma das causas dessa retração é que a psicanálise não soube se adaptar a essas mudanças. Muitos psicanalistas continuaram dogmáticos. Muitos foram reacionários com relação à família, sem aceitar as mudanças da ideia de família, o casamento homossexual e as novas formas de família. Mas, isso vai mudar.

Por outro lado, acho que a psicanálise clássica, aquela de antes da Primeira Guerra, ela ainda existe, mas muito pouco. O que me interessa é a implantação futura da psicanálise em países onde ela nunca existiu.

Por que a psicanálise é tão repudiada em certos lugares como no oriente, nos países islâmicos e em ditaduras como na China... Até mesmo na França, onde ela é atacada toda semana...
Temos que separar os países democráticos onde a luta contra ou a favor de Freud existe, e é ótimo que exista, pois nos permite dizer o porquê de defendê-lo, são os países com liberdade de expressão. A psicanálise só se desenvolveu em países democráticos e potencialmente democráticos.

Na América Latina, a psicanálise se desenvolveu apesar das ditaduras, mas foi atacada pelas ditaduras. Só que as ditaduras latino-americanas não eliminaram completamente a liberdade de associação. Já o regime stalinista acabou com ela. Os nazistas também, é claro. E, nos países islâmicos, Freud é visto como o diabo, ele é pior do que a Igreja Católica. Não apenas ele é judeu, mas também estuda a sexualidade feminina. Então, torna-se impossível desenvolver a psicanálise.

Na Rússia, ela se desenvolveu com a perestroika. Os russos voltaram a praticar a psicanálise, já que antes de 1930 havia um movimento psicanalítico, mas ela se desenvolve ao mesmo tempo que as outras terapias.

Na China, não. Ainda é um país totalitário.

A psicanálise é proibida por lá...
Não é proibida, mas não é permitida. Não existe uma verdadeira liberdade de associação na qual alguém pode se dizer psicanalista se for psiquiatra. Se for psicólogo, pode fazer o que quiser. Mas não há liberdade de associação.

Eu demonstrei que, para que possamos falar livremente do nosso inconsciente, o Estado de Direito é necessário. Ou seja, para que um sujeito possa falar sobre si mesmo, ele precisa ter o direito de falar. Nos países totalitários, não existe liberdade. Isso influencia a interiorização.

E por que a hostilidade na França? Por que a psicanálise não está na moda?
Uma vez, fiz um seminário sobre o ódio a Freud. Ele é recorrente. Eu diria que, na primeira metade do século, a religião era o principal foco de hostilidade.

Por causa da sexualidade...
Exatamente. Agora, na segunda metade do século, há um debate ridículo. A psicanálise é acusada de não ser uma ciência. De não ser eficaz. Pergunto se as outras terapias são eficazes...? Digo que ninguém é eficaz e todos são eficazes. Então, não se consegue provar a eficácia real de nenhum tipo de terapia.

Por exemplo, os psicotrópicos são extremamente eficazes. Eles permitiram que os doentes mentais saíssem dos hospícios, mas não curaram a loucura. Eles são eficazes contra a depressão, mas não a curaram.

A psicanálise cura as neuroses. É por isso que alguém disse que ela era feita para as pessoas sãs. Não é mentira. Mas, hoje em dia, consideramos a neurose uma doença. Neurose não é doença, é quase a norma.

Então, a psicanálise é formidavelmente eficaz, e estou medindo bem as palavras, em pessoas que querem compreender a si mesmas e sem pressa. Ela é eficaz contra as neuroses do fracasso, contra problemas sexuais, mas nada é eficaz contra a loucura. A psicanálise é muito eficaz com as crianças, porque não podemos dar muitos remédios a uma criança. Ela é útil nesses casos.

Acho que o ideal seria uma abordagem de três causalidades: a química é uma delas; a ambiental, as causas sociais; e as causas psíquicas. Mas isso é muito caro. Se você quiser tratar alguém que está mal e que precisa de uma terapia pela palavra, medicamentos e assistência social, fica muito difícil. A abordagem tripla é difícil.

Então, nós oscilamos entre o excesso do social, com a assistência social, e agora com o excesso do aspecto biológico. É um problema verdadeiro. Entretanto, a crítica à psicanálise nos levou a um resultado inesperado mas muito real: as pessoas estão procurando gurus, seitas, terapias mágicas, tratamentos alternativos e a religião.

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Élisabeth Roudinesco

Élisabeth Roudinesco

Psicanalista francesa

Historiadora e psicanalista francesa, é autora das biografias de Jacques Lacan e Freud.
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