Artigo Edgar Morin | 1968-2008: o mundo que eu vi e vivi

Postado em jun. de 2013

História | Filosofia | Sociedade

Artigo Edgar Morin | 1968-2008: o mundo que eu vi e vivi

Crise de 1968, crise de 2008. O filósofo francês Edgar Morin costura a história e traz à luz a sabedoria da complexidade sobre a contemporaneidade.


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O filósofo francês Edgar Morin esteve no Fronteiras do Pensamento duas vezes. Na primeira (2008 - POA), apresentou um tecido entre as revoluções de 1960 e a crise global que se manifestava em 2008. Em sua segunda passagem pelo curso (2011 - POA e SP), Morin trouxe conclusões de sua primeira fala, abordando “a via" para o futuro da humanidade. No texto a seguir, extraído da primeira conferência, Morin traça análises comparativas entre a crise contemporânea e a crise de 1968, trazendo à luz uma compreensão histórica fundamental para entendermos o que está acontecendo no mundo.

Edgar Morin | 1968-2008: o mundo que eu vi e vivi

O que é 1968? É uma revolta plurinacional, multinacional, de estudantes que acontece em países tão diferentes quanto os Estados Unidos, a Alemanha, o Egito, a Polônia, e, de certo modo, no mundo todo vê-se, pois esse movimento estudantil, já nos anos 1960, na Califórnia, se manifestava por meio de uma cultura que viria a se chamar contracultura, tentativa dos jovens de fazer uma cultura diferente da do mundo em que viviam, criando comunidades.

Em compensação, na França, será sobretudo uma explosão que vai durar pouco mais de um mês e durante a qual acontecerá toda uma série de fenômenos importantes. Interessa também saber qual é a característica comum a todas essas revoltas em países tão diferentes uns dos outros.

A característica comum é, evidentemente, a revolta contra a autoridade, quer seja a autoridade dos mestres, quer seja a autoridade do Estado, quer seja a autoridade da família tradicional. Mesmo assim, o curioso é que, embora haja uma defasagem histórica, quando se pensa na revolução cultural na China, essa revolução, embora iniciada por Mao Tsé-Tung contra seu comitê central, foi realizada por estudantes e colegiais que então manifestavam uma violência incrível, inclusive por meio de assassinatos e da humilhação dos professores, mas ainda aí vemos a característica de revolta do adolescente. E por que os adolescentes se revoltam contra as autoridades, por mais diversas que sejam?

Inicialmente, é preciso dizer que, durante os anos 1960, produziu-se um fenômeno histórico extremamente importante: a autonomização da adolescência. O que é adolescência? É uma categoria que se pode situar entre o fim da infância amparada, quando se está protegido no casulo familiar, e a entrada no mundo da vida adulta, com uma carreira, uma profissão, o casamento, etc. Esse intervalo não existe sociologicamente nas sociedades tradicionais. Numa sociedade tradicional, ainda hoje, em numerosos países, as crianças são postas para trabalhar em tenra idade. A adolescência é eliminada. Em sociedades ainda mais antigas, não havia adolescência, mas cerimônias de iniciação que faziam a criança passar à categoria homem.

No nosso caso, a adolescência se desenvolve como um corpo autônomo e se constitui numa cultura. Essa cultura não é apenas o rock, nem apenas agrupamentos em torno de uma música, mas também um modo comum de se vestir, hábitos comuns, quase as mesmas buscas, as mesmas aspirações. E, de certo modo, pode-se dizer que 1968, com as revoltas estudantis, marca a irrupção, na vida política e social, de um novo tipo de classe que não é uma classe social, mas, digamos, uma bioclasse. É uma classe que tem caráter biológico e que, tornada autônoma, aspira a se libertar e mostra algumas de suas aspirações profundas. Que aspirações são essas?

Mais autonomia e mais comunidade. Duas coisas que parecem contraditórias: de um lado, o desejo de ser livre; do outro, o desejo de uma comunidade calorosa. Essas aspirações são vividas simultaneamente, porque existe, ao mesmo tempo, o sentimento de que não há mais comunidade numa sociedade atomizada, reduzida ao individualismo, reduzida a formas, à procura do lucro, e o sentimento de que as liberdades foram reduzidas.

Então, essa aspiração que aparece nas revoltas é encorajada, de certa forma, pelas revoltas que acontecem no mundo. Por exemplo: o Vietnã que se revolta contra o Ocidente, em especial contra a presença norte-americana. Che Guevara, que também manifesta uma revolta contra esse mundo. Na realidade, esses exemplos estão aí para dizer que a própria juventude deve se revoltar. Além do mais, o que aconteceu na Alemanha, na Itália e na França foi que essa aspiração, no início espontânea, em determinado momento, na França, foi animada por libertários como Daniel Cohn-Bendit, os trotskistas, os maoístas. Eles diziam aos adolescentes: “suas aspirações, mas somos nós que vamos realizá-las, fazendo a revolução e fazendo o socialismo." E se certamente confiscaram o movimento de 1968 em alguns países, sua ideologia exprimia essas aspirações de um mundo de harmonia, fraternidade e liberdade.

É preciso dizer que a sociedade industrial moderna, quando democrática, ao mesmo tempo em que introduziu liberdades que inexistiam nas sociedades autoritárias e escravagistas, trouxe suas próprias coerções: a aplicação de uma visão determinista e mecanicista do indivíduo, a lógica do trabalho controlando toda a vida social e humana, o que na França se chamava de métro-boulot-dodo [metrô, trabalho, dormir], ou seja, uma vida cada vez mais anônima.

Evidentemente, ao passo que em nossa sociedade há essa coerção que os adolescentes recusam-se a aceitar, no mundo adulto tenta-se encontrar escapatórias. O que fazem as pessoas quando podem? Tiram férias e são donas do próprio tempo, vestem-se como querem, vivem entre amigos ou em família, procuram o lazer. Festas, futebol, paixões encontram-se aos pequenos bocados, “pedaços" de harmonia, no cotidiano, instantes de poesia na vida.

Mas o que quero dizer é que, se eu quisesse falar hoje de sentido profundo, do sentido antropológico, seria exatamente desse movimento, dessa aspiração tão profunda da humanidade, que os adultos esquecem, abandonam, por conformismo; seria exatamente dessa aspiração que desperta e que eu acredito que ainda vai se exprimir de um novo modo no futuro próximo.

Maio de 68 foi a revelação de uma falha da civilização ocidental. Estou falando de todo o mundo ocidental. Ela mostrou que onde havia abundância de bens materiais, onde havia abundância de bens de consumo, bem-estar material, não havia bem-estar moral, não havia bem-estar psicológico; havia, ao contrário, infelicidade, insuficiências tratadas privadamente, quer dizer, recorrendo-se aos soníferos, às drogas, ao psiquiatra, etc. Há um novo mal-estar, produzido pela nossa civilização que, no entanto, produziu virtudes e qualidade, mas que gera cada vez mais essas características negativas que, de certo modo, Maio de 68 aponta. E se falou justamente de crise de civilização, da insuficiência dessas civilizações e, repito, de aspiração a outra vida.

Falou-se ainda em mostrar que, enquanto muitos teóricos de antes de 1968 pensavam que a civilização, nossa civilização ocidental, iria cada vez mais resolver os problemas mais graves da humanidade, a desigualdade, o desemprego, o mal-estar, a infelicidade, etc., percebia-se que, ao contrário, esses males tinham se agravado. Percebeu-se que nossa civilização era uma superfície, uma camada sobre um subsolo que estava cada vez mais minado.

Mas o solo não desabou porque, de algum modo, houve o restabelecimento, depois de explosões diversas, da antiga ordem. Pode-se dizer que tudo mudou. Pode-se dizer, de preferência, que nada mudou, embora tudo tenha se modificado. O que se pode dizer é que, durante a década de 1960, vê-se o fim de uma esperança e o fim de um desespero. É o fim de uma esperança, ou seja, havia algo, uma fórmula, um mundo que estava transformando a humanidade, criando um homem novo, uma sociedade nova. Isso desaba, percebe-se que o sistema criou uma nova dominação, uma nova servidão, e chegou a uma série de impasses econômicos. Logo, é o fim de um desespero e de uma esperança; é o fim do desespero de populações que viviam nesse sistema ou que eram oprimidas, ainda que o fim desse desespero não se traduza no nascimento de uma esperança.

Assim, assistimos à expansão da economia liberal e, ao mesmo tempo, o que é um fenômeno dos anos 1990, ao extraordinário desenvolvimento das tecnologias de comunicação, que permitem conectar instantaneamente um ponto a outro do planeta, por telefone móvel, fax, correio eletrônico e tudo mais que a internet trouxe. Temos, então, a globalização técnica, econômica, que se espalha no mundo, mas, também, uma segunda globalização mais fraca, mas real, uma globalização de democratização e dos direitos do homem. Então, o que é preciso observar é que a globalização se traduz por uma unificação técnica, econômica, um tipo de ocidentalização. Temos, portanto, quase por toda parte, a reivindicação de uma identidade que, com ou sem motivo, teme ser sufocada. Mas, temos um segundo elemento que explica tudo isso: a perda do futuro.

Por quê? Porque o mundo viveu com a ideia de que o progresso era uma lei histórica, que o amanhã seria melhor do que o hoje. E talvez houvesse algumas perturbações, mas essa lei era certa. A partir dos anos 1970, 1980, 1990 evidencia-se não apenas que este progresso não é certo, mas como seus motores são ambivalentes. Então, a crise do futuro, a crise do progresso; quando se perde a esperança do futuro se instauram a angústia e a neurose. A crise do futuro provoca um recolhimento no presente. A vida no presente, um dia de cada vez. E quando toda uma parte do mundo ocidental vive um dia de cada vez, quando a política se faz um dia de cada vez, quando não se pensa mais no futuro, não há mais perspectiva, ou melhor, quando o presente é ruim e infeliz, o que resta?

Tudo confirma a ideia de que este mundo se unifica apenas tecnicamente, economicamente, mas não se unifica política, cultural e humanamente. Portanto, temos este mundo em explosão. E o que significa o termo “crise"? Uma crise significa perigo e oportunidade. Pode provocar desintegrações e até mesmo regressões. Mas, uma crise também pode levar a novas soluções. Quando um sistema não pode mais tratar de seus problemas vitais, o que acontece?

Ou o sistema se desintegra ou dá origem em si a outro sistema mais rico, capaz de tratar de suas questões fundamentais. Disse o poeta T.S. Eliot: “No meu fim está o meu começo". Isso quer dizer que talvez não seja o fim do mundo, talvez seja o fim de um mundo e o começo de outro, porque, numa época como a nossa, vemos muitas forças de destruição que agem como a lagarta que se autodestrói, mas não vemos as forças de criação que, talvez, já estejam em movimento por aí. Logo, em meu fim, talvez, esteja o meu começo. E o filósofo Heidegger diz: “A origem não está atrás de nós, ela está diante de nós".

Então, o mundo que morre seria simplesmente um mundo que morre para que outro nasça. Não é uma profecia, mas é o que se pode concluir do exame desses 40 anos que transformaram o mundo.

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Edgar Morin

Edgar Morin

Filósofo

Sociólogo, antropólogo, historiador e filósofo francês, é doutor honoris causa em 17 universidades e um dos últimos grandes intelectuais da época de ouro do pensamento francês do século XX.
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