Os três ingredientes do amor

Postado em dez. de 2020

Filosofia | Felicidade

Os três ingredientes do amor

Filósofo francês, Alain de Botton escreve sobre a importância do amor e aponta por que os solitários são os verdadeiros especialistas no assunto.


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1. CUIDADO

Uma maneira de entender por que o amor é tão importante e por que chega a ser considerado quase um sinônimo do sentido da vida é analisar os desafios da solidão. É muito comum deixarmos de mencionar o tema da solidão: aqueles que não tem a quem recorrer sentem vergonha; aqueles que têm alguém sentem (algum nível subjacente de) culpa. Mas as dores da solidão são uma possibilidade universal e nada constrangedora. Acima de tudo, não deveríamos sentir que estamos sozinhos ao nos sentirmos sozinhos. Inadvertidamente, a solidão nos propicia os insights mais eloquentes sobre por que o amor é tão importante. Poucas pessoas entendem mais sobre a importância do amor do que aqueles sem alguém para amar. É difícil saber ao certo por que o amor é tão valorizado até que – e apenas se –, em algum ponto do caminho, passamos por períodos amargos e indesejados sem a companhia de ninguém além de nós mesmos.

Quando estamos sozinhos, é bem possível que as pessoas se esforcem para ser bondosas conosco; talvez nos façam convites e demonstrem gestos de ternura, mas é difícil escapar de uma sensação subjacente de condicionalidade por trás de seu cuidado e seu interesse em nós. Estamos propensos a detectar os limites da disponibilidade até mesmo das pessoas mais dispostas, e também a sentir as restrições sobre aquilo que exigimos delas. Não raro é tarde demais – ou cedo demais – para telefonar. Uma edição radical de nosso verdadeiro ser é o preço a se pagar pelo convívio.

 

 

O amor promete corrigir todos os aspectos insuspeitos da vida solteira que corroem nossa alma. Na companhia do ser amado a preocupação, o cuidado, a atenção e a liberdade de ação alcançam uma profundidade quase ilimitada. Seremos aceitos mais ou menos como somos; não sofreremos pressão para reiterar nosso status o tempo todo. Poderemos revelar nossas vulnerabilidades e compulsões mais extremas e absurdas e ainda assim sobreviver. Não haverá problema em ter manias, chorar ou cantar mal. Seremos tolerados mesmo se às vezes deixarmos de ser charmosos, ou até mesmo se nos tornarmos repugnantes durante um tempo. Poderemos acordar o outro em horários estranhos para compartilhar tristezas e empolgação. Nossas menores minúcias serão relevantes.

Na presença do ser amado, as avaliações não serão mais tão cínicas e precipitadas. Haverá tempo em abundância. Quando estivermos buscando os meios para nos expressarmos, o outro ficará empolgado e ansioso. Dirá “diga, continue” enquanto claudicarmos e hesitarmos. Aceitará dedicar a grande atenção necessária para, aos poucos, desfiar a narrativa de como nos tornamos as pessoas que somos. Não dirá simplesmente “ah, pobrezinho” para então nos dar as costas. Ao invés de reagir às nossas confissões concluindo que somos um pouco esquisitos, dirá com bondade “eu também”. Com ele, nossas fragilidades estarão em boas mãos. Sentiremos uma imensa gratidão por quem fizer o que chegamos a suspeitar ser impossível: nos conhecer muito bem e, ainda assim, gostar de nós. Cercados por todos os lados pela frieza de maior ou menor intensidade, saberemos enfim que, nos braços de um outro bondoso, paciente e extraordinário digno, de gratidão infinita, nós somos importantes de verdade.

 

2. ADMIRAÇÃO

No diálogo O Banquete, de Platão, o dramaturgo Aristófanes sugere que a origem do amor reside em um desejo de nos completarmos encontrando uma “outra metade” há muito perdida. No início dos tempos, arrisca ele em uma lúdica conjectura, todos os seres humanos eram hermafroditas com dois troncos, duas costas, quatro mãos, quatro pernas e dois rostos virados em direções opostas na mesma cabeça. Essas hermafroditas eram tão poderosas e presunçosas que Zeus se viu forçado a cortá-las em duas, uma metade macho e outra fêmea. A partir desse dia, cada um de nós anseia nostalgicamente por reunir a parte da qual fomos apartados. Não precisamos encarar a história de modo literal para reconhecer nela uma verdade simbólica: nos apaixonamos por pessoas que, de alguma forma, prometem nos fazer inteiros. No âmago do êxtase que sentimos nos primeiros dias de um novo amor está a gratidão por encontrar alguém que parece complementar tão perfeitamente nossas características e propensões. Não nos apaixonamos todos pelas mesmas pessoas porque não carecemos das mesmas coisas.

Os aspectos que nos parecem desejáveis em um parceiro dizem respeito àquilo que admiramos, mas não temos certeza de possuir. Podemos sentir uma potente atração por alguém competente por sabermos como nossas próprias vidas são marcadas pela falta de confiança ou pela tendência a entrar em pânico diante de complicações burocráticas. Ou o nosso amor pode focar no lado cômico de um parceiro por termos plena ciência de nossa própria tendência ao desespero estéril e ao cinismo. Nossas inadequações pessoais explicam a direção de nossos gostos. Esperamos mudar um pouco na presença do outro, tornando-nos – com sua ajuda – versões melhores de nós mesmos.

Não devemos esperar alcançar isso por conta própria. Podemos, em alguns âmbitos, ser pupilos e professores ao mesmo tempo. Costumamos encarar a educação como algo penoso, imposto a nós contra nossa vontade. O amor promete uma outra forma de educação. Através de nossos amantes, nosso desenvolvimento pode ocorrer de um modo muito mais estimulante e receptivo, marcado por profundo desejo e empolgação. O amor nos dá energia para construirmos e mantermos a melhor narrativa a respeito de alguém. Retornamos a uma forma ancestral de gratidão. Nos comovemos com detalhes aparentemente ínfimos: ele ou ela nos telefonou, está vestindo aquele blusão específico, recosta a cabeça na mão de determinado modo, tem uma pequena cicatriz no topo do indicador esquerdo ou um hábito específico de pronunciar certa palavra um pouquinho errado... Não é atípico se importar assim com um parceiro, reparar em muitas coisas minúsculas e ao mesmo tempo comoventes, pungentes e positivas. É algo que pais, artistas e deuses são capazes de fazer. Não podemos seguir nessa mesma toada para sempre: esse arrebatamento nem sempre é de todo saudável, mas entregar-se por um tempo à devida apreciação da real complexidade, beleza e virtude de outro ser humano é um de nossos passatempos mais nobres e redentores, uma arte em si.

 

 

3. DESEJO

Um dos aspectos mais surpreendentes e, em certo sentido, desconcertantes do amor é que nosso desejo não se limita a admirar nossos parceiros; também nos inclinamos fortemente a desejar sua posse física. O despertar do amor costuma ser sinalizado por um ato que, em realidade, é imensamente esquisito: dois órgãos em geral utilizados para comer e falar são pressionados e friccionados um contra o outro com força crescente, ato acompanhado por secreção de saliva. Só seremos capazes de começar a entender o papel da sexualidade no amor se pudermos aceitar que ele não é, de um ponto de vista puramente físico, uma experiência necessariamente prazerosa em si, e que nem sempre configura uma sensação tátil mais prazerosa que, por exemplo, uma massagem na nuca ou um prato de mariscos.

E ainda assim, o sexo com a pessoa amada pode ser a melhor coisa em nossas vidas. O motivo para isso é que o sexo propicia um grande entusiasmo psicológico. O prazer que sentimos se origina de uma ideia: fomos autorizados a fazer algo muito privado com e para outra pessoa. O corpo de outra pessoa é uma zona muito privada e protegida. Ao tirarmos a roupa, estamos dizendo implicitamente a outra pessoa que ela foi enquadrada em uma categoria minúscula e muito policiada de pessoas: estamos concedendo a ela um privilégio extraordinário. A excitação sexual é psicológica. Não é tanto o que os nossos corpos estão fazendo que nos excita. É o que acontece em nossos cérebros: a aceitação está no âmago dos tipos de experiência que chamamos coletivamente de “ficar excitado”. Ela tem um lado físico – o sangue circula mais rápido, o metabolismo muda de chave, a pele aquece –, mas por trás de tudo isso está um tipo muito diferente de mudança: a sensação de um fim ao nosso isolamento.

No geral, a civilização exige que apresentemos aos outros versões rigorosamente editadas de nós mesmos. Pede que sejamos mais puros, limpos e educados do que seríamos em outras situações. Essa exigência cobra um preço interior muito alto. Aspectos importantes de nossa personalidade são empurrados para as sombras. As pessoas que nos amam sexualmente fazem algo muito redentor: param de diferenciar as diferentes facetas de quem somos. Conseguem ver que somos a mesma pessoa o tempo todo; que nossa gentileza ou dignidade em algumas situações não é falsa, tendo em vista como somos na cama, e vice versa. Através do amor sensual, temos uma chance de resolver um dos problemas mais profundos e solitários da natureza humana: como sermos aceitos como somos de verdade.

 

 

(Via Harper's Bazaar)

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Alain de Botton

Alain de Botton

Filósofo

Escritor suíço residente em Londres, famoso por popularizar a filosofia e divulgar seu uso na vida cotidiana.
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