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"Em manifestações contra o casamento gay, eu vi diversas vezes essa ideia repetida por ativistas em seus cartazes: 'pai+mãe=criança, isso é a natureza!', como se a natureza fosse o nosso código moral, como se ela pudesse definir padrões. Na verdade, sabemos graças a Newton e Darwin, que a lei da natureza não é a de harmonia e justiça, como pensavam São Tomás e Aristóteles, mas a lei dos mais fortes."
Luc Ferry explica a história de alguns elementos-chave nas relações humanas contemporâneas: as opções sexuais, a família e o casamento. Como se criou a ideia de que a heterossexualidade era o correto a ser seguido? Quando surgiu o casamento por amor? O que é a família moderna?
Ferry traz dados surpreendentes aos olhos dos países desenvolvidos: "Em 158 países do mundo, o casamento pode ser feito legalmente a partir de 18 anos, mas, em quase 150 a pessoa pode casar antes disso desde que tenha o consentimento dos pais. Assim, na Nigéria, por exemplo, 75% das meninas são obrigadas a se casar antes de sua maioridade, sem escolher ou nem mesmo conhecer seus futuros maridos." E os números de uniões arranjadas que envolvem menores de idade estão crescendo. Confira a entrevista abaixo:
>> Assista a Luc Ferry no fronteiras.com: A sabedoria do amor
Historicamente, quando surgiu o casamento por amor?
Luc Ferry: Para responder essa questão, é preciso lembrar tempos longínquos. O nascimento da família moderna não aconteceu em um dia só. Na Idade Média, ninguém se casava por amor. Os principais propósitos do casamento eram a transmissão do nome e da herança, mas também havia uma necessidade econômica: ter mais braços para ajudar na lavoura. As pessoas não se casavam. Suas famílias ou suas vilas as casavam. Eram acordos entre as comunidades.
Mas, com o aparecimento do salário, os indivíduos começaram a se emancipar, e esse tipo de acordo foi derrubado por uma razão simples: o mercado de trabalho, que surgiu com o capitalismo, fez as pessoas se mudarem para as cidades. Ao mesmo tempo em que os indivíduos foram libertados das formas tradicionais de controle social, eles adquiriram autonomia financeira. Assim, passaram a desejar não se casar por força ou obrigação, mas por opção e afinidade. Assim nasceu o casamento por amor.
Essa é uma explicação breve, mas o raciocínio é historicamente correto. Devo acrescentar, porém, que antes de o casamento por amor se tornar praxe no Ocidente, como é hoje, houve um período intermediário em que as famílias burguesas adotavam o casamento sentimental ou optavam pelo casamento de conveniência em proporções variáveis.
Para resumir, nos últimos 60 anos, no Ocidente, a união por amor é a dominante. O debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo está enraizado nessa história e é algo inevitável: uma vez que você desassocia o casamento dos antigos princípios (de sucessão e economia), e resta apenas o amor, então, obviamente, o casamento homoafetivo se torna possível.
>> Leia entrevista com Luc Ferry: Como alcançar a serenidade na sociedade do medo?

Como podemos definir a família moderna?
Luc Ferry (foto): É muito simples. Trata-se de uma família fundada a partir de união ou casamento escolhido pelo e para o amor. Em outubro de 2013, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) publicou um relatório sobre o elevado número de casamentos precoces e arranjados no mundo. O documento questiona: por que apenas os países europeus condenam fortemente esse tipo de união arranjada enquanto o restante do mundo parece ter se acomodado?
As conclusões do relatório são terríveis: em 158 países do mundo o casamento pode ser feito legalmente a partir de 18 anos, mas em quase 150 a pessoa pode casar antes disso desde que tenha o consentimento dos pais. Assim, na Nigéria, por exemplo, 75% das meninas são obrigadas a se casar antes de sua maioridade, sem escolher ou nem mesmo conhecer seus futuros maridos. No Iêmen, não é raro que meninas de 8 a 10 anos sejam ofertadas para homens adultos. E o que mais surpreende é que essas práticas não estão em declínio, como poderíamos esperar. Pelo contrário, estão em crescimento.
Estima-se que esses casamentos vão aumentar cerca de 15% nos próximos anos, de modo que 130 milhões de meninas terão esse terrível destino até 2030. Eu digo terrível, porque, além de privação de liberdade e de amor, as esposas muito jovens correm mais riscos de saúde do que as adultas: elas sofrem abusos antes de entrarem na puberdade, mesmo quando os maridos se comprometem a respeitar esse limite. Além disso, seus sonhos, educação e vida profissional são quebrados para sempre.
Em suma, como diz o relatório, "o casamento infantil é uma violação chocante dos seus direitos fundamentais. Ele rouba meninas da sua educação, saúde e qualquer perspectiva de longo prazo." Note-se que quando falamos de casamento precoce ou infantil, raramente nos referimos aos meninos. Esse flagelo é essencialmente para as meninas.
"Claro que há bons modelos
na natureza nos quais podemos
nos inspirar, mas cabe a nós decidir
que queremos seguir e rejeitar."
Atualmente, no Brasil, a palavra “família" é alvo de discussões e polêmicas. Grupos conservadores e religiosos demonstram preconceito e discriminação nas redes sociais contra novas constituições familiares – especialmente contra as famílias formadas por casais do mesmo sexo. Há também um Projeto de Lei conservador que tenta definir família apenas como a formada por homem, mulher e filhos. É comum esse tipo de reação conservadora diante das transformações da sociedade?
Luc Ferry: A condenação de práticas homossexuais pela Igreja é baseada em uma concepção da natureza que já não se aplica. No século 13, a Igreja, por meio de São Tomás, retomou a ideia de Aristóteles, que diz que o universo é o que os gregos chamavam de "cosmos", ou seja, algo divino, harmonioso, justo, bom e belo. Em referência à natureza sagrada, a homossexualidade foi definida em textos da Igreja como uma desordem, algo não natural e, portanto, um pecado.
Em manifestações contra o casamento gay, eu vi diversas vezes essa ideia repetida por ativistas em seus cartazes: “pai+mãe=criança, isso é a natureza!", como se a natureza fosse o nosso código moral, como se ela pudesse definir padrões. Na verdade, sabemos graças a Newton e Darwin, que a lei da natureza não é a de harmonia e justiça como pensavam São Tomás e Aristóteles, mas a lei dos mais fortes.
Como observam os cientistas, na natureza real, os mais fracos, os doentes e os menos adaptados são varridos pela seleção natural. É assim que um vírus ou um tsunami pode devastar todo um país, por exemplo. A medicina moderna, assim como a política, está em uma luta desesperada contra a lei da seleção natural.
Os nossos sistemas de proteção social, por exemplo, não são naturais – são construídos justamente para evitar a eliminação dos mais fracos. A natureza pode ser tudo, menos um padrão para a nossa moral e política. Claro que há bons modelos na natureza nos quais podemos nos inspirar, mas cabe a nós decidir o que queremos seguir e rejeitar. Então, devemos pensar a questão do casamento gay em termos de vontade e de liberdade, e nunca em termos de natureza.
Toda a história do casamento por amor rompe com a natureza e a tradição. A pessoa que se posiciona contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo deve se questionar: "que razão legítima eu tenho para querer a proibição do casamento gay? De que forma o casamento gay prejudica a minha liberdade?". É muito fácil explicar o motivo de se proibir crimes como assassinato, roubo e estupro. Mas não há nenhuma razão, repito, nenhuma, para se proibir o casamento gay ou a adoção por esses casais.
(Via Crescer)