Djamila Ribeiro e Lilia respondem: "Violência é sacrificar uma vida inteira para ter um direito básico"

Postado em out. de 2019

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Djamila Ribeiro e Lilia respondem: "Violência é sacrificar uma vida inteira para ter um direito básico"

Djamila Ribeiro e Lilia Schwarcz encerraram o Fronteiras Salvador 2019 em um debate especial sobre educação, racismo, feminismo e outros relevantes temas aos brasileiros.


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Depois de promover conferências com o jornalista e escritor cubano Leonardo Padura e com o filósofo francês Pierre Lévy, o Fronteiras do Pensamento Salvador encerrou o ciclo anual de eventos com um debate especial. Na noite desta terça-feira (01), Djamila Ribeiro, filósofa e pesquisadora, e Lilia Schwarcz, professora e antropóloga, apresentaram suas ideias no palco do Teatro Castro Alves.

Djamila Ribeiro abriu a noite discutindo os temas de seus livros, Quem Tem Medo do Feminismo Negro? e O Que é Lugar de Fala?. “É importante entender e fazer uma investigação profunda sobre as consequências do olhar colonial, principalmente por colocar o negro como ‘o outro’. Pensar o lugar de fala é discutir a restituição da humanidade”, disse.  

Lilia Schwarcz lembrou como o racismo estrutural se aproveita da ideia de invisibilidade social do povo negro, principalmente das mulheres, atingindo diversos setores da sociedade. “O racismo vem de uma zona de silêncio no meio social. Mas tudo que aparenta se manter em silêncio tem muito barulho social”, defendeu. Schwarcz ainda fez questão de falar e questionar as mortes da vereadora carioca Marielle Franco e da garota Ágatha Moreira, vítimas de uma violência social que se direciona à comunidade negra.

Após suas falas, ambas as intelectuais responderam as perguntas do público presente. Também, a pergunta* enviada por vocês, nossos seguidores nas mídias sociais, que são patrocinadas pela Braskem. Confira abaixo as respostas:

Pergunta Braskem: O que faz o Brasil ser e ter este sentimento de "Brasilidade", mas - ao mesmo tempo, ignorar as suas imensas desigualdades socioambientais e econômicas? Podemos dizer estamos juntos enquanto nação, e não como "fragmentos" de povo e país?

Djamila Ribeiro: Eu acho que a gente sequer pode se entender como nação, no sentido de que a maioria ainda passa por violências como as que a população negra passa. Existem vários 'brasis' e existem várias Salvador, existe a Salvador da Vitória e a Salvador da Cabula.

Romantizamos muito essas supostas pontes que nos unem, mas se resiste a falar dos muros que nos separam.

Ainda há uma ideia muito romântica em relação à questão da harmonia das raças, que todo mundo se dá bem, que aqui não teve apartheid legal como nos Estados Unidos e na África do Sul, sem considerar que existe um apartheid institucional muito marcado e que o brasileiro médio tem uma dificuldade de entender o racismo como um sistema de opressão.

No geral, as pessoas falam que o racismo é quando uma atriz famosa é atacada nas redes. As pessoas ficam muito mobilizadas quando isso acontece e eu gosto de fazer algumas observações em alguns portais.

Em uma delas, eu lembro bem, foi quando a Maju Coutinho foi atacada e alguém disse: “Nossa, em pleno século XXI isso ainda acontece?” A pergunta que faço é: “Quando isso não aconteceu?”

O Brasil foi fundado em cima de sangue negro e indígena, mas há essa falta de compreensão de boa parte da população em entender que racismo não é só no âmbito individual. Racismo é quando a gente chega aqui em Salvador, na Bahia, uma capital negra, e a maioria dos professores da Universidade Federal da Bahia é branca. Isso é racismo.

As pessoas não raciocinam que a meritocracia tem que ser entendida como um instrumento de violência quando a gente responsabiliza um indivíduo pela omissão do Estado.

Eu fui professora da rede pública em uma escola de periferia em São Paulo em que havia estudantes que trabalhavam o dia inteiro e tinham que estudar de noite em uma escola totalmente sucateada, e muitas pessoas diziam a eles: “Se você quiser, se você se esforçar, você consegue”. Então, é um culto muito forte ao sacrifício e à meritocracia.

Quando todo mundo aplaude que uma pessoa andava 50 quilômetros por dia, que tirou livro do lixo e se formou na universidade, eu falo que isso é uma história de violência. Violência é sacrificar uma vida inteira para ter um direito básico.

Então, ainda falta essa consciência de entender o racismo como um sistema de opressão que nega oportunidades, o racismo como estruturante de todas as relações sociais e não meramente algo individual.

Foto: Betto Jr. / CORREIO


Lilia Schwarcz: Os brasileiros têm mania de denegar. Nós dizemos que racista é o outro, machista é o outro, violento é o outro e assim vamos. Não usamos a máxima de Shakespeare “ser ou não ser, eis a questão”, mas “ser é não ser”. Nós invertemos isso.

Quando eu comecei a escrever Sobre o Autoritarismo Brasileiro, em outubro de 2018, o Brasil era o décimo país mais desigual do mundo. Quando terminei, em março de 2019, o Brasil já era o nono país mais desigual, ou seja; em vez de melhorar, a situação piorou.

Existem várias formas de explicar isso e uma delas, a mais consistente, é através de um baixo investimento em educação.

Se compararmos o Brasil aos países europeus ou aos nossos vizinhos latino-americanos, o Brasil não aplica uma parte proporcional ao seu PIB em educação e nós sabemos que só a educação tem a capacidade de desarmar o gatilho da desigualdade social, que é um problema estrutural no Brasil. Enquanto nós não lidarmos com isso, nós seremos mais intolerantes.

Pesquisas mostram que de agosto de 2018 até novembro de 2018 a intolerância cresceu muitíssimo. Djamila citou muito bem a intolerância religiosa, em segundo lugar temos a intolerância de gênero, em terceiro a intolerância de região e em quarto intolerância de geração. Como nós podemos falar que somos um país se cometemos racismos e preconceitos internos?

Eu e Djamila conversávamos hoje sobre o termo nordestino. O pessoal que é do Sul diz eu sou paulista, eu sou carioca, eu sou mineiro, mas com grande facilidade chama os outros de uma coisa só. Eu acho que nós devíamos lançar uma plataforma e chamar a nós mesmos de “sudestinos”, essa seria a melhor saída.

Esses 30 anos consistentes de democracia são um processo inconcluso, porque a gente tem que conquistar a democracia todo dia. Não tem direito conquistado, é preciso sempre conquistar mais uma vez.

O que fizeram nesses 30 anos é que eles permitiram minimamente alguma inclusão, tanto que nós temos agora outros centros de uma geopolítica do conhecimento no Brasil. Aqui na Bahia mesmo, em Cachoeira, eu vi uma formatura de Medicina com uma turma só de negros e isso é uma grande novidade. 

É preciso que a gente não permita que tenhamos um recuo dos direitos conquistados. Isso deveria ser o objetivo de todos nós: vigilância cidadã é o que todos nós precisamos, todo o resto é besteira.  

Foto: Betto Jr. / CORREIO


Lilia, você falou sobre os revisionismos e mencionou que os africanos escravizavam africanos. Eu queria que você explicasse isso, porque, dentre os revisionismos que a gente vem sofrendo hoje, por parte de uma visão que se utiliza da má fé, sobretudo para legitimar a desigualdade, há esse argumento que existia escravidão antes da chegada dos portugueses.

Lilia Schwarcz: Existem dois grandes temas que estão concentrando os revisionismos: um deles é a questão do golpe militar. Foi sim um golpe militar. Um golpe militar acontece quando um governo democraticamente eleito é retirado do poder, portanto foi um golpe militar.

Segunda questão: um grande revisionismo em torno do tema da escravidão, sobre o qual eu mesma respondi ao então candidato à presidência e hoje chefe do Estado. Existia escravidão na África, como existia escravidão na Europa, ou seja; escravidão existe desde a antiguidade. Mas temos que pensar com cuidado de que escravidão estamos falando.

Nas Áfricas existiam guerras que escravizavam o inimigo, mas os escravos nunca viravam mercadoria. Era muito diferente do que foi a escravidão mercantil.

Primeiro, os portugueses pisaram sim na África, e pisaram bastante. Pisaram muito antes do descobrimento do Brasil, que não foi um descobrimento, foi um genocídio brasileiro. Mas vamos aos portugueses, eles estavam lá e transformaram a questão do tráfico num negócio absolutamente lucrativo. O tráfico dava aos portugueses muito mais dinheiro do que a cana de açúcar e o café, e esse tráfico foi tão violento e perverso que ele desorganizou as fronteiras.

De fato, foi a primeira vez em que escravizados foram transformados em mercadorias que poderiam ser penhoradas, emprestadas, eram mercadorias.

Quando temos um chefe do Executivo que diz que nunca teve esse problema, pois nunca teve escravizados, eu penso que temos que refletir bastante sobre esse tipo de resposta que isenta a pessoa de responsabilidade. Ele tem responsabilidade, assim como todos nós temos responsabilidade.

Nós temos um problema com a palavra reparação. A Constituição de 1988, uma Constituição completa e generosa, falhou em políticas de reparação. Eu me refiro às pessoas que morreram durante a ditadura militar e nunca se falou em reparação - o que é um desrespeito -, e à questão da educação, que nunca foi um direito de todos neste País.

Os escravos não podiam ser educados, até para não se rebelarem, então é preciso pensar em reparação de uma forma muito maior. É preciso reparar o que o sociólogo negro Mário Medeiros chama de “dupla morte”, que é a morte física e a morte da memória. Essa reparação ainda precisa ser feita.

Essa escravidão que existiu na antiguidade na Mesopotâmia, no Egito e no Islã estava em algum momento associada à cor da pele? A escravidão africana, praticada na América, foi o primeiro momento na história em que a escravidão esteve associada à cor da pele e raça?

Lilia Schwarcz: Nunca existiu uma escravidão direcionada desta forma, porque era uma escravidão entre iguais. Eu tenho uma guerra e o meu inimigo será escravizado, mas ele é um igual.

No caso da escravidão que foi criada pela nossa civilização ocidental, foi uma civilização que criou o lugar do escravo negro como mercadoria, como coisa. Isso só pode ser explicado por conta do acesso que os portugueses tinham a várias feitorias na costa africana, e que como eu disse, transformaram o tráfico de escravos em um negócio absolutamente lucrativo.  

Djamila, você iniciou a sua apresentação falando sobre o epistemicídio, que seria o assassinato de uma forma de compreensão, de uma teoria de conhecimento do mundo. Eu gostaria de saber se você inclui no epistemicídio um esquecimento voluntário ou intencional da memória histórica, às vezes de modo deliberado.

Djamila Ribeiro: Sem dúvida nenhuma. Walter Benjamin é um autor que gosto muito e em tese sobre o conceito de história ele vai dizer que ela é contada sob o ponto de vista dos vencedores. Então, quando a gente tem a historiografia tradicional, como a Lilia Schwarcz trouxe brilhantemente, a gente tem a narrativa dominante que apaga da memória insurgências da população negra e das populações indígenas.

O epistemicídio é esse conjunto de aniquilamento histórico, tanto da memória, quanto da imposição de uma narrativa que faz com que a gente não conheça a história dos vencidos. Portanto, é necessário contar essa narrativa a contrapelo, se não os vencedores nunca cessarão de vencer.

De fato, apagar da memória figuras importantes faz parte desse processo de epistemicídio. Por que nos cursos de Ciências Sociais a gente não estuda a obra de Clóvis Moura, por exemplo? Ou Abdias do Nascimento? O próprio Abdias do Nascimento, em Genocídio do Povo Brasileiro, que é um livro fundamental para se pensar o Brasil, vai dizer que genocídio é todo tipo de aniquilamento de um povo, seja político, moral, epistemológico, da memória.

Quando você mata uma cultura, você mata um povo. Quando você mata a produção de saber de um povo, você está matando esse povo.  Então, é de se pensar o quanto isso está ligado ao privilégio racial de quem pode contar essas narrativas, e a gente acaba não questionando muito isso.

Por que quando eu falei aos meus professores que queria estudar filosofia africana a resposta foi “isso não existe”? A filosofia que me foi ensinada é grega, francesa e alemã. O que significa isso?

Esse apagamento de outras histórias e de outros saberes faz com que a gente esteja num País com mais de 300 etnias indígenas e se eu perguntar o nome de cinco, provavelmente as pessoas não vão saber nomear, pois eles passaram pelo processo de colonização e foram todos denominados como “o índio”, em vez de se reconhecer que são povos com culturas e línguas diferentes. O próprio apagamento das línguas indígenas faz parte desse processo de epistemicídio, dessa imposição da língua colonial.

Epistemicídio é esse conjunto de apagamentos sistemáticos das nossas produções, saberes e histórias, uma vez que eles foram contados a partir do ponto de vista do vencedor, como disse Benjamin.

É muito comum em famílias brancas que digam “a minha família veio do sul da Itália, ou veio da Espanha ou de uma aldeia no interior de Portugal”. As pessoas negras, em geral, não sabem de onde vieram seus ancestrais. Esse epistemicídio também engloba um apagamento dos vestígios da vida familiar e da ancestralidade?

Djamila Ribeiro: Não é possível sabermos de onde viemos, porque os arquivos foram destruídos. A gente tem uma lacuna em relação a nossa identidade.

Um descendente de italianos consegue voltar à Itália e saber de onde veio o bisavô dele, mas a gente não tem como saber exatamente. Isso faz parte desse processo de apagamento da nossa identidade e de dominação.

A gente sabe por aproximação, mas não sabe exatamente, porque isso faz parte desse projeto de controle social da população negra, é um projeto de extermínio físico e simbólico num sentido mais amplo.

Muitas vezes, as pessoas não têm a compreensão de quanto isso afeta a nossa subjetividade. Se eu não sei de onde eu venho, é muito mais fácil eu acreditar naquilo que disseram que é o meu lugar.

Nesse sentido, eu acho que as religiões afro-brasileiras cumprem um papel fundamental no resgate da nossa ancestralidade, pois as religiões afro-brasileiras - demonizadas justamente por serem afro-brasileiras – nos ajudam a reconstruir memórias que nos trazem um outro olhar sobre nós mesmos.

Eu sou uma mulher do candomblé e fui criada nos terreiros que cumpriram também uma função social e têm um papel importantíssimo, sobretudo na criação de novas histórias e subjetividades, e as religiões afro foram essenciais nesse sentido.

A gente vive hoje um momento de terrorismo para com essas religiões, em que terreiros estão sendo destruídos, pessoas de candomblé estão sendo agredidas e é uma pena que isso não cause nas pessoas uma tensão em relação a esses acontecimentos.

Os terreiros já passaram por um processo de perseguição histórica, muitos tiveram que encontrar estratégias para continuar existindo. O próprio sincretismo, muitas vezes criticado, não deixou de ser uma maneira para encontrar estratégias para continuar cultuando as religiões afro-brasileiras.

Meu babalorixá diz uma frase muito importante: “Se a escravidão nos retirou a humanidade, o candomblé e as religiões afro nos devolvem essa humanidade”, uma vez que a gente consegue reconstruir a nossa ancestralidade, já que no Brasil isso faz parte de um projeto de controle da população negra.

*As perguntas enviadas pelo público podem ser editadas, pois questionamentos muitos longos tendem a não ser compreendidos pelo conferencista no processo de tradução (que acontece ao vivo, durante o evento, feito pelo tradutor direto nos fones de ouvido).

(Com informações de Correio)

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Djamila Ribeiro

Djamila Ribeiro

Filósofa e escritora brasileira

Mestre em Filosofia Política, é premiada intelectual e palestrante internacional, representante dos movimentos feminista e negro.
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