Contardo Calligaris: "É preciso defender valores que nos pareciam já garantidos"

Postado em jul. de 2019

História | Psicologia e Saúde Mental | Governança

Contardo Calligaris: "É preciso defender valores que nos pareciam já garantidos"

O fim de castas, a individualidade, a liberdade de pensamento e expressão. Os valores defendidos pela revolução liberal não são tão coletivos quanto pensávamos, diz Contardo Calligaris.


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O fim de castas, a individualidade, a liberdade de comportamento, pensamento e expressão. Estas são algumas das conquistas da civilização através de muito debate e discórdia ao longo de mais de um século. 

Porém, como vemos hoje, os valores defendidos pela revolução liberal não são tão coletivos quanto pensávamos ou queríamos, defende o psicanalista Contardo Calligaris. Segundo ele, "o momento atual é paradoxal: é preciso defender valores que nos pareciam já garantidos. Pois é, não são. A revolução liberal ainda não ganhou." 

Contardo Calligaris volta ao Fronteiras do Pensamento para colocar a sociedade no divã. Um dos mais interessantes nomes a se ouvir sobre a temática do projeto este, os Sentidos da Vida.

A conferência com Calligaris acontece no mês de outubro. Além do psicanalista, o Fronteiras ainda promove eventos com o Nobel da Paz Denis Mukwege, Janna Levin, Werner Herzog e Luc Ferry.

 

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Logo abaixo, o curador do Fronteiras do Pensamento, o cientista político Fernando Schuler, conta por que chamou o psicanalista para esta temporada de conferências. Também revela que o tema Sentidos da Vida foi originado por uma fala do psicanalista.


Leia o artigo do psicanalista Contardo Calligaris.

Descobre-se que persistem entre nós forças opostas à revolução liberal | Contardo Calligaris

Nunca apostei realmente no progresso como direção inelutável da história.

Ao contrário, sempre pensei que quando há progresso, é efeito de lutas, sacrifícios, negociações ou mesmo acasos –mas não de uma inércia que iria na direção do "melhor".

Mesmo assim, sem otimismo excessivo, acreditava que, aos trancos e barrancos, as coisas evoluíssem. Dificilmente, eu pensava, voltaríamos para trás, como naqueles jogos de tabuleiro em que, por parar num lugar desgraçado, a gente é obrigado a recuar sei lá quantas casas.

Na minha juventude, parecia-me que todos, por mais que nossas aspirações discordassem, compartilhávamos um fundo comum: os ideais da revolução liberal (francesa e americana) do fim do século 18.

Alias, engraçado notar que é dessa revolução que nos veio a ideia de que haveria um progresso inevitável da razão, a qual promoveria o fim das castas, a primazia do indivíduo sobre qualquer entidade coletiva (família, tribo, nação, torcida etc.), o Estado laico, um novo Código de leis (pelo qual só seria proibido o que fosse qualificado como crime) e (nos limites desse código) uma liberdade absoluta de comportamento, pensamento e expressão.

Dentro do legado comum da revolução liberal, alguns defendiam a propriedade privada dos meios de produção e a possibilidade de qualquer desigualdade econômica, à condição que sempre fosse preservada uma equivalência de pontos de partida (educação pública, sistema de bolsas etc., para que qualquer um pudesse avançar socialmente até onde ele quisesse). Outros achavam que os meios de produção deveriam ser de todos e que, graças a isso, a sociedade se transformaria numa "maravilhosa" irmandade de iguais.

Esse embate entre os defensores do capitalismo e os defensores do socialismo durou um século e meio, até todos constatarmos que os lugares onde os meios de produção eram coletivizados, além de se tornarem disfuncionais e falidos, aboliam as liberdades do indivíduo que eram as conquistas originárias da revolução liberal. E a essas conquistas ninguém estava a fim de renunciar.

Um embate de dois séculos para nada, então? Não, porque o resultado foi que, por lutas e pressões sucessivas, as condições de vida de milhões de indivíduos melhoraram. E hoje quase não há economias capitalistas sem preocupação social. Vivemos em sociais-democracias.

Francis Fukuyama, ainda nos anos 1980, anunciou que esse era o fim do conflito interno essencial da história do Ocidente, a qual, portanto, terminava (O Fim da História e o Último Homem, Rocco, 1992).

Sobrariam, claro, conflitos externos entre os valores do Ocidente moderno (razão laica, liberdades etc.) e, do outro lado, mundo afora, as sociedades tradicionais que não passaram pela revolução liberal (o fundamentalismo islâmico sendo o exemplo mais óbvio).

Assista aos vídeos com Fukuyama no fronteiras.com

Pois bem, descobre-se hoje que persistem, entre nós, forças contrárias à própria revolução liberal, inimigas das liberdades inventadas no fim do século 18, se não antes, e que pareciam garantidas desde então.

Quem é contra a revolução liberal? Quem são esses novos aspirantes ao poder? O que eles pensam?

Sabemos bem como agem. Eles não prometem privilégios nem capitanias, mas cortejam o povo e a pequena classe média com alguns temas recorrentes: ódio ao estrangeiro, paixões de grupo (nacionalismo, racismo, torcidas, qualquer coisa que possa parecer mais importante do que o indivíduo) e moralismo – não no sentido de "ser" moral, mas de poder e dever impor regras aos outros, ou seja, como uma forma de domínio.

Esses são os cavalos de Troia pelos quais os novos aspirantes ao poder infiltram as mentes e as recrutam para um combate contra as conquistas antigas da revolução liberal.

Agora, eles, os novos aspirantes ao poder, o que pensam? Minha hipótese é que eles sequer pretendem promover ideias: são adoradores do poder pelo poder e compram qualquer ideologia que possa valer votos. São os "políticos" cuja única causa é sua eleição e reeleição.

Seja como for, o momento atual é paradoxal: é preciso defender valores que nos pareciam já garantidos.

Pois é, não são. A revolução liberal ainda não ganhou. Cuidado: pelas ruas, andam pessoas queimando bruxas e querendo transformar seus costumes e suas crenças em lei para todos os outros. 

(Via Folha)

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Contardo Calligaris

Contardo Calligaris

Psicanalista e cronista

Doutor em psicologia clínica, faz parte do corpo docente do Institute for the Study of Violence, em Boston.
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