Alain Mabanckou: ficção, identidade e cultura

Postado em nov. de 2020

Literatura | História | Cultura

Alain Mabanckou: ficção, identidade e cultura

Na conferência intitulada “O Soluço do Homem Negro”, o escritor Alain Mabanckou lançou um convite aos africanos para colocarem o presente em suas reflexões, libertando-se da suposta glória do passado.


Compartilhe:


Na noite da última quarta-feira (04), o escritor Alain Mabanckou realizou sua conferência na temporada 2020 do Fronteiras do Pensamento, com mediação do jornalista Manuel da Costa Pinto. Mabanckou, que escolheu falar sobre ficção, identidade e cultura, abriu o encontro destacando seu livro “O Soluço do Homem Negro”, que é um convite aos africanos para se conhecerem entre si, e colocarem o presente em suas reflexões, libertando-se da suposta glória do passado.   

Ao abordar os capítulos do livro que será lançado em breve no Brasil, o pensador foi percorrendo a questão da escravidão, a relação com o ocidente, explicou termos como o da França negra (diferenciando presença negra de comunidade negra), do existencialismo negro, e falou na questão dos negros e da identidade. Ele enfatizou que são várias identidades, não é possível singularizar.  

Sobre o Brasil, o escritor franco-congolês acredita que as novas gerações estão mudando a situação, e afirma: "Eu espero que vocês brasileiros se dediquem a reunir aquilo que os une para que vosso presente seja digno do que seus descendentes esperam de vocês. Um Brasil que seja laboratório de encontros. Um Brasil responsável pelo seu destino. Um Brasil que rejeita as desigualdades".

Um dos mais fortes nomes da literatura francesa contemporânea, o escritor Alain Mabanckou é também jornalista, poeta e professor de literatura francófona e escrita criativa na Universidade da Califórnia. É autor de obras como “As cegonhas são imortais”, “Petit Piment”, “Luzes de Ponta-Negra”, o romance “Memórias de porco-espinho” - que lhe rendeu o Prêmio Renaudot e, em agosto, lançou no Brasil o livro “Black Bazar”. 

Confira algumas perguntas respondidas por Alain Mabanckou durante a conferência:

Manuel da Costa Pinto: Durante muito tempo nós vivemos aqui no Brasil sob o signo da democracia racial, do mito segundo o qual haveria uma coexistência pacífica entre brancos e negros, cuja prova seria a mestiçagem brasileira. Hoje, ao contrário, se fala muito de racismo estrutural na sociedade brasileira. Você conheceu o Brasil, você veio ao Brasil durante a Flip, a Festa Literária de Paraty, então o que você pensa da especificidade brasileira em relação aos Estados Unidos e em relação à Europa? Você encontrou essa utopia de laboratório no Brasil?

Alain Mabanckou: Durante muito tempo, mesmo quando vivia no Congo, nós tivemos essa grande ideia favorável do Brasil. O Brasil, para nós, era o lugar por excelência no qual a gente poderia encontrar alguns dos nossos amigos, irmãos e irmãs que partiram, e os africanos que nós éramos. Nós tínhamos imagens praticamente clássicas dos africanos que iriam ser o rei Pelé, o rei do futebol. Mas atrás do rei Pelé, a gente sabia que a sociedade tinha uma composição mais complexa. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil também nos lembrava da nossa cultura africana pela música, pela maneira de pensar, também por conta das lutas dos povos que queriam o bem em sua existência.

A especificidade do Brasil seria justamente a especificidade de todos esses países que estão nos trópicos, onde a gente encontra justamente os negros, que vieram pelo comércio de escravos, do tráfico. Quando eu estava em Paraty eu via uma bela cidade, um lugar muito bonito, mas por trás dessa cidade se escondia certa situação delicada dos negros que não era mencionada.

Indo ao Brasil, o meu editor é brasileiro, ele é negro como eu, e isso me deixou feliz, um editor brasileiro que me publica, então ele vai entender a minha situação. Mas isso não tinha a mesma repercussão, porque eu não o escolhi porque era negro, mas estava contente de estar com ele, de publicar na editora dele, porque ele dizia que era preciso salvar as culturas. 

"Em todos os lugares onde andei, em qualquer espaço geográfico onde a gente encontra negros, se não é na África, e mesmo na África, os negros estão sempre em uma situação delicada: ou de dominação, ou de hipocrisia, ou de cegueira política. Ou seja, você é acolhido em princípios gerais, onde somos todos irmãos e irmãs, a cor não conta, mas na hora que se precisa administrar a política, a questão social, aí a gente percebe que os negros são resultado da escravidão que teve no país."  

O problema negro no Brasil existe, porque mesmo quando a gente faz a promoção do Brasil em geral, se faz mais a promoção daquilo que é mais claro e menos escuro, mais branco e menos preto, salvo quando se trata de um gênio, como é o caso do Pelé, na época. Mas eu penso que a nova geração de brasileiros está mudando essa situação por conta da literatura, da pintura, dos encontros e também por intermédio da busca de sua identidade. O que falta no Brasil, que deveria fazer, é permitir aos seus negros poder compreender a sua história. Que a história de todos esses negros brasileiros seja história obrigatória na escola. Indo ao Brasil vi isso, a existência dos negros, a presença dos negros, mas também senti que esses negros estavam em busca de sua identidade, que não eram suficientemente valorizados.     

Manuel da Costa Pinto: Qual é o primeiro passo que a humanidade deve dar para se reinventar?

Alain Mabanckou: Esse primeiro passo da humanidade deveria ser um balanço daquilo que nós temos em comum em nosso imaginário, ou seja, procurar inicialmente tudo aquilo o que nos une. Aplaudir aquilo que nos une. Enfatizar o que nos une e minimizar o que nos divide. Porque como eu digo sempre, nossa humanidade, hoje, sempre tem tendência de exagerar aquilo que nos divide e minimizar aquilo que nos une. O primeiro passo que a humanidade deve dar é o passo da união dos imaginários, ver como em nossos pensamentos nós queremos todos um mundo melhor, um mundo que avance, que tenha futuro.

Manuel da Costa Pinto: Você disse na sua conferência que o negro é uma criação dos brancos. Qual é a relação nessa ideia de criar o outro para estigmatizá-lo, para afastá-lo e torná-lo escravo, de onde vem essa tendência, essa necessidade de eliminar o outro, de fazer do outro o absolutamente diferente?

Alain Mabanckou: O que é fundamental é que, em geral, cada vez que um grupo se julga superior, penso nos nazistas, na época, os escravagistas, os traficantes de escravos, etc, eles sempre têm meios de definir o outro para erradicá-los ou retirá-los da fotografia da humanidade. O negro foi inventado, o judeu foi inventando. Quando eu falo inventado, eu quero dizer vestido, todo um grupo de uma população vestido de certa ideologia, de certo catálogo de preconceitos que fazem com que se retire desses homens e dessas mulheres o que os tornam humanidade.

Quando você pega o exemplo do continente africano, durante o genocídio de Ruanda, em 1994, que opôs os tutsis e os hutus, um grupo da população se dizia superior ao outro, queria esmagar o outro grupo, que se dizia que era inferior. Mas essa ideologia era uma ideologia que foi herdada da colonização. Para fazer leitura dos negros da África nós categorizamos os africanos, dissemos esses são os africanos superiores, os outros são os africanos um pouco bárbaros, nós viemos civilizá-los, porque se nós não civilizarmos vocês, vocês serão os negros, vocês serão baratas. 

Era a mesma coisa o discurso antissemita, era constituído desses elementos que permitiam essa desumanização. Você desumaniza um grupo de uma população de maneira que ser judeu era pejorativo, enquanto o espírito era de ver que no interior, mesmo de um grupo de população, havia todos os elementos que nos permitiam viver juntos, e desumanizamos. E uma vez que desumanizamos quando queremos exterminar ficamos com a consciência tranquila, porque dizemos que não são seres humanos. E isso aconteceu assim. Foi dessa forma, inclusive na África.

Em Moçambique também foi feita a mesma coisa, teve essa espécie de genocídio no qual, mesmo durante a colonização, se cortavam os braços dos africanos por parte dos belgas achando que os africanos eram apenas negros e que eles não tinham essa espécie de humanidade. Então o vocabulário, a maneira de conceber as coisas, a maneira de definir, é sempre esse desenho macabro daqueles que estão procurando erradicar, tirar a gente da fotografia da humanidade. 

"Os maiores crimes, os maiores extermínios da nossa humanidade, frequentemente, sempre, aliás, foram precedidos de um discurso de desumanização, porque fundamentalmente não somos destinados a eliminar o outro. Isso exige certa loucura pra chegar a esse ponto de desumanização, e essa loucura é constituída por certa literatura." 

Quando tivemos essa espécie de escravidão, quando houve o tráfico negreiro, havia o fato de que a Europa tinha a consciência tranquila. Os cientistas demonstraram que os negros não eram seres humanos, que eles não eram inteligentes, que eles não eram civilizados, que eles viviam nas trevas, que nós podíamos exterminá-los e que isso não seria um problema pra ninguém. Então eles chegaram todos orgulhosos de sua civilização ocidental em territórios para perturbar justamente as famílias inteiras, exterminá-las e levá las para esses espaços distantes e fazendo do povo negro um povo de servidão durante muito tempo, durante mais de quatro séculos.

 

 

Compartilhe:


Alain Mabanckou

Alain Mabanckou

Escritor

Professor de literatura francófona e escrita criativa na Universidade da Califórnia, é autor de Memórias de porco espinho, obra agraciada com o Prêmio Renaudot, e Petit Piment, romance indicado aos prêmios Goncourt
Ver Bio completa