Fazer da fragilidade uma pequena virtude

Postado em jun. de 2021

Literatura | História | Cultura

Fazer da fragilidade uma pequena virtude

Valendo-se de contribuições de Robert Darnton e Natalia Ginzburg, Júlia Corrêa reflete sobre como acontecimentos históricos podem quebrar e alterar a ordem das coisas.


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A consciência de que a ordem das coisas pode se quebrar e se alterar repentinamente é uma lição da História e da condição humana, como nos lembram Robert Darnton e Natalia Ginzburg. 

Por Júlia Corrêa*

“Raramente fazemos uma pausa para contemplar a possibilidade de uma outra ordem das coisas, a menos que algo fora do comum exploda à nossa volta. Mas isso vai acontecer, cedo ou tarde”. Tal observação foi feita em 2007 pelo historiador americano Robert Darnton, em sua conferência para o Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre. Mais de uma década se passou, e estamos todos às voltas com a pandemia da covid-19, um desses eventos com poder de transformar as nossas relações e o nosso olhar para o mundo. 

Iluminismo. Na ocasião, Darnton abordou a influência que Voltaire e Rousseau, dois expoentes do Iluminismo francês, exercem ainda hoje sobre a humanidade. Cada um ao seu modo, eles entenderam a centralidade da cultura nos processos sociais, pelo arranjo de elementos estéticos, linguísticos e comportamentais. Era nesse sentido que o primeiro interpretava, por exemplo, a supremacia de Luís XIV como uma questão de hegemonia cultural. Daí a importância do estímulo, na época, a autores de teatro, acadêmicos e artistas, que desempenhavam um papel vital para a construção do “Estado-teatro” do rei.  

 

“Voltaire apresentava o sistema literário do Ancien Régime como um sistema de poder, um ingrediente crucial do Estado luís-quatorzeano, e posicionava Molière bem no coração de tudo isso — como o ‘legislador do código de conduta na sociedade polida’”, conta Darnton, explicando que essa visão consistia numa ideia de progresso, de que os escritores iriam “civilizar” o mal dos homens, atuando de cima para baixo. 

Rousseau concordava, de certo modo, com tal diagnósticomas ele o via de forma negativa. Os valores ligados à cultura apontados por Voltaire seriam, em sua visão, “correntes” que precisavam ser quebradas pela população oprimida, em uma verdadeira revolução cultural. Como explica Darnton, Rousseau se voltou “não apenas contra as artes e as ciências, mas contra a cultura em um sentido mais amplo, como um meio de vida peculiar às classes dominantes do Ancien Régime”.  

Essas ideias estiveram na base da Revolução Francesa, que, conforme a descrição do historiador americano, “transformou valores, atitudes, a linguagem e até mesmo o tempo (calendário revolucionário), o espaço (o sistema métrico) e, acima de tudo, todos os códigos que governavam as relações entre as pessoas comuns na vida cotidiana”.  

Eventos históricos. O que Darnton argumenta, com a exposição sintetizada acima, é que hoje muitas dessas ideias nos parecem abstratas, difíceis de serem levadas a sério. Essa dificuldade em entendermos a experiência das pessoas que vivenciaram as agitações de 1789 seria, porém, menos intelectual do que visceral. Isso porque nosso senso de estabilidade nos faz sentir “que o mundo o qual habitamos pode não ser o melhor, longe disso, mas que é o único possível”. E é aí que entram os eventos extraordinários que, cedo ou tarde, borram nossas noções de uma existência organizada.  

Em ensaio publicado no livro As Pequenas Virtudes, a escritora italiana Natalia Ginzburg nos dá pistas dessa ideia de instabilidade, a partir da descrição que faz da vida no pós-guerra europeuCom a sensibilidade que lhe é característica, ela detalha: “Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão sólida. Pode desabar de um momento para outro. Atrás dos serenos vasos de flor, atrás das chaleiras, dos tapetes, dos pavimentos lustrosos de cera há o outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.” 

Se é verdade que as palavras de Ginzburg podem ser associadas a traumas que experiências como uma guerra podem ocasionar, o excerto de seu ensaio também nos ajuda a compreender o centro do argumento de Darntona possibilidade de olharmos mais crítica e conscientemente para o status quode percebermos a fragilidade de hábitos e valores que temos como sólidosPara ilustrar esse ponto, ele se vale de um exemplo de seu próprio país, os atentados de 11 de setembro de 2001: “Quando houve a explosão, paramos, atônitos. Esquecemos o que estávamos fazendo. Descartamos as diferenças que nos separam em tempos normais e saímos dos nossos papéis para nos tornarmos iguais, cidadãos companheiros, unidos por uma catástrofe coletiva”.  

Darnton faz a devida ressalva de que o século XVIII terminou mal, abrindo caminho para o terror revolucionário e para a reação termidoriana, e esclarece que não advoga nenhuma “engenharia social”. Para ele, no entanto, podemos voltar nossos olhos para um “possibilismo” contra o caráter dado das coisas — uma antítese que podemos compreender ao estudarmos com atenção o período iluminista. “Grandes eventos tornam possível o reordenamento das coisas como elas são, de modo que elas não sejam mais vivenciadas como dadas, mas, sim, como desejadas, de acordo com convicções a respeito de como devem ser”, afirma o historiador. Uma lição de grande valor, neste momento, para avaliarmos quais caminhos a sociedade pode tomar num mundo pós-pandemia.  

 

* Júlia Corrêa é jornalista e mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo (USP)

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Robert Darnton

Robert Darnton

Historiador cultural norte-americano

Historiador cultural norte-americano, diretor da Biblioteca de Harvard.
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