Copo Vazio e a ficção

Postado em jun. de 2021

Literatura | Cultura | Mulheres Inspiradoras

Copo Vazio e a ficção

Autora do romance "Copo Vazio", que explora o mundo psíquico de uma mulher abandonada, Natalia Timerman reflete sobre a linha tênue entre ficção, realidade e autobiografia nos romances.


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O portal do Fronteiras do Pensamento inicia hoje a publicação de uma nova e muito especial série de textos. Trata-se da Ocupação Literária Fronteiras: um espaço no qual escritoras e escritores de variados perfis da cena literária brasileira, em primeira pessoa, falam a respeito de suas obras, de seus processos criativos, de suas visões acerca da literatura e das paixões que a literatura mobiliza.

Na primeira coluna, a escritora Natalia Timerman ocupa esse espaço para falar de seu primeiro romance, Copo Vazio, publicado pela editora Todavia.

 

Por Natalia Timerman*

Já disse Roland Barthes que é o leitor o lugar onde as escrituras múltiplas que compõem um texto se reúnem (a unidade do texto não está em sua origem, ele afirma, mas em seu destino) e que o autor, no livro, está morto. Em que momento se daria seu último respiro ― se na entrega definitiva do original prestes a se proliferar em cópias, se no instante em que as letras escritas ou tecladas uma a uma se transformam em tinta gráfica, se no momento em que o legente abre seu exemplar ―, não é possível dizer ao certo; sabe-se apenas que “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem” e que “o nascimento do leitor deve-se pagar com a morte do autor". 

Como autora de um romance, diante dos renitentes que me escrevem perguntando o que significa aquele final, se o capítulo do reencontro é sonho ou se eu vivi aquela história ― se Mirela, a protagonista, sou eu ―, só posso devolver a pergunta, qual uma estereotipada sessão de análise em miniatura. Me acorrem, então, as interpretações que eu não havia planejado e com que diferentes leitores me presentearam em clubes de leitura dos quais participei ou em inbox nas várias redes sociais. Porque este é outro elemento de se publicar e ler um livro hoje: o acesso ao autor, sua foto e seus dados biográficos disponíveis a uma busca de distância no onipresente oráculo dos nossos tempos, seus gestos e sua voz manifestos em entrevistas que ficam gravadas, e hoje quase tudo fica gravado, o que me parece ser indício da nossa dificuldade de perder. 

Em nossos dias, quando um autor é completamente inacessível em imagem ou voz audível, com timbre próprio, ele já se tornou personagem, personagem de si mesmo, expansão de sua criação ficcional ― como Elena Ferrante, que insiste em se confirmar somente como voz literária e se manifesta, então, como personagem, ou protagonista, ou narradora da própria vida por meio de outras ou, em Frantumaglia, como crítica dos próprios e de outros textos ― e, segundo Ricardo Piglia, a crítica é a forma moderna da autobiografia, a pessoa escreve sua vida quando crê escrever suas leituras. 

Na profícua e inesgotável discussão do que seja a ficção, a intenção do autor como última palavra, se não ficou para trás, talvez componha apenas um dos inúmeros elementos do mosaico que nunca chega a se completar ― ou talvez se complete no dia da verdadeira morte de seu maior expediente, o romance, tão anunciada mas nunca de fato real. A humanidade já existia antes do romance, mas, assim como novos artifícios se incorporam à nossa existência de modo que nos perguntamos como era possível estar sobre a face da terra antes, sem eles ― as cartas, a internet, o telefone celular, ápice dessa incorporação, que traz no nome o prenúncio enviesado de fazer parte de nosso corpo como as células ―, talvez já não saibamos existir sem o romance, cuja marca, como sonda Julián Fuks, é a ausência de marcas, cuja regra é a ausência de regras, só sendo-lhe imutável sua mutabilidade eterna. 

Copo Vazio

Copo Vazio, invento que me inaugurou nesse mundo dos que escrevem romances, foi concebido como uma história sobre perda, e talvez mais ainda sobre busca, como uma leitora atenta me fez descobrir. Estão vendo? Nem às minhas próprias intenções iniciais eu tenho mais acesso, agora que as críticas e leituras todas a ampliaram de modo indelével. É assim com tudo, porque é assim com o tempo: cada instância está aberta, inclusive o passado, que se deixa ― ou se obriga ― reinterpretar com o que acontece depois. Não poderia ser diferente com o romance, não poderia ser diferente com a relação entre ficção e real: a primeira não se sucede sempre ao segundo, são inúmeros os exemplos de invenções que vieram a modificar o que tomamos por realidade, e isso é verdade tanto no momento em que um leitor segura nas mãos um livro aberto (que, no mínimo, modifica a organização de seu dia, e com sorte, com muita sorte, pode modificar sua vida), quanto dentro de romances em que a realidade entra múltiplas vezes, algumas das quais transformadas pelos personagens inventados. Pois, aqui nos auxilia Leonor Arfuch, a narração de uma vida, longe de representar algo existente, impõe sua forma e seu sentido à vida mesma. 

Karl Ove Knausgård joga com esses elementos de forma exemplar. Sua série de romances Minha luta se propõe a narrar a vida do autor, o que seria autobiográfico se não houvesse a invenção dos detalhes que a memória nunca poderia alcançar, ou o trabalho de linguagem ― que no entanto está também na autobiografia ―, ou se sua vida fosse de fato digna de ser contada e não a vida de um norueguês qualquer na casa dos quarenta ― o que no entanto, desde há muito, também não é critério de exclusão dos elegíveis a contarem a própria história. Talvez os livros de Knausgård fossem autobiográficos se continuássemos iguais a nós mesmos ao longo da nossa própria vida ou, com a iluminação de Bakhtin, se o autor, um momento da totalidade artística, coincidisse com outro momento dessa totalidade que é o herói. A coincidência pessoal entre o indivíduo de que se fala e o indivíduo que fala não elimina, segundo Bakhtin, a diferença entre esses momentos. Karl Ove Knausgård talvez pudesse ter escrito uma autobiografia se existisse, se fosse possível, o mero autobiográfico, que não inventasse simultaneamente, ao escrever, a si mesmo. 

Mas, em tempos de invenções de notícias, há que se lembrar que existe sim, para além do literário, a diferença entre o que foi fato e o que não foi, entre o que aconteceu dentro da realidade e o que aconteceu somente dentro do mundo ficcional. Há que se perguntar, também, a razão de nossa procura pelo biográfico, ou de nossa procura pelos motivos pessoais que levam uma pessoa a inventar, como se, no fundo, por trás de cada ficção houvesse, sim, a verdade íntima, alguma ao menos, do autor. Talvez haja: talvez, em cada romance, ecoe a voz de Flaubert, um dia audível, dizendo "Madame Bovary c’est moi". Talvez, dentro do literário, não exista nem o completamente inventado, nem o inteiramente real. 

Sobre Copo Vazio, posso afirmar que não existem. O romance, assim como tudo o que escrevo, é um pouco vivido, um pouco inventado, um pouco roubado (de livros, de amigos, de minha escuta clínica como psiquiatra e psicoterapeuta); o limite entre essas instâncias, aliás, como quase todos os limites, é instável: achei que houvesse inventado eu mesma a frase que depois descobri ser mais um roubo de Roland Barthes. 

>>> Leia um trecho de Copo Vazio, obra de Natalia Timerman

Ainda assim, resta a pergunta pelos motivos de nossa busca frenética, cada vez mais frenética, pelo biográfico, e Leonor Arfuch nos ajuda novamente a tatear uma resposta. Ela nos diz que “a persistência aguda da crença, esse algo a mais, esse suplemento de sentido que se espera de toda inscrição narrativa de uma “vida real”, remete a outro regime de verdade, a outro horizonte de expectativa”, e que o registro (auto)biogáfico “talvez seja onde se manifesta, com maior nitidez, a busca da plenitude da presença ― corpo, rosto, voz ― como proteção inequívoca da existência, da mítica singularidade do eu.” Essa busca seria, então, uma proteção em tempos de incertezas, como a necessidade de um excesso de eu real onde só há dúvida e falta. (O “excesso” aqui é por minha conta. Há, em O espaço biográfico, um otimismo talvez permitido por sua escrita anteceder a avalanche das redes sociais sobre nosso cotidiano).

Se, depois de tão longa digressão e desmonte de extremos, ainda restar algum lugar para a intenção do autor, ouso ocupá-lo dizendo de Copo Vazio é um livro organizado em fragmentos temporais que ecoam o estilhaçamento de sua protagonista Mirela, abandonada de forma oximórica depois de um relacionamento que não chegou a começar. O centro do vazio que se faz então, o núcleo do absurdo, é sua dor, narrada desse modo no tempo verbal presente. O livro começa no futuro, demarcado também pelo tempo verbal, no reencontro desse não-casal muitos anos depois, diante de uma banal prateleira de supermercados. O fato de Mirela, quase triunfante, se despedir de Pedro vagamente e molhar com suas lágrimas a manteiga e o cereal matinal é a remissão, irônica, a todas as propagandas que utilizam a família e seus cafés da manhã para atualizar instantaneamente nosso ideal aberrante de felicidade. 

*Natalia Timerman é médica psiquiatra, psicoterapeuta, doutoranda em literatura e escritora.

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