Niall Ferguson pergunta ao passado para projetar o futuro

Postado em out. de 2021

História | Futuro e Tendências Globais

Niall Ferguson pergunta ao passado para projetar o futuro

Saulo Goulart, doutor em História Cultural pela Unicamp, analisa a obra do historiador e escritor britânico.


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Na conferência que fez em 2017 no Fronteiras do PensamentoNiall Ferguson antecipou um dos temas que abordava em seu próximo livro ainda inédito “A Praça e a Torre”: o impacto das redes sociais na sociedade, não a partir da visão utópica vislumbrada na interconexão universal, fraterna e civilizada de pessoas mundo afora, mas por estas redes terem se transformado em canais para disseminação de ódio, intolerância, inverdades e polarização. À época, estavam em evidência episódios como a jornada de terror patrocinada pelo Estado Islâmico, a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e a ruptura política e comercial proposta pelo Reino Unido com o Brexit, cada qual mostrando o poder dos meios digitais para promover seus protagonistas e mobilizar corações e mentes das audiências.

Historiador britânico reconhecido como um dos mais influentes analistas contemporâneos do cenário global, por um viés que costura ações e efeitos da política e da economia, Ferguson é professor da Universidade de Harvard e autor de livros referenciais como “Civilização”, “Império” e “A Ascensão do Dinheiro”. Em sua nova conferência no Fronteiras do Pensamento, neste dia 13 de outubro, o papel das redes sociais tanto no empobrecimento dos debates quanto nas ameaças à democracia deve entrar na pauta, assim como outro tema sobre o qual ele tem se debruçado nos últimos anos: a ascensão da China como antagonista dos Estados Unidos, sobretudo no campo da economia, no que classifica como a nova Guerra Fria. Embora o nome de Ferguson costume ser associado à observação do mundo sob a lente das transformações impostas pelo capitalismo, ele não é, a rigor, um analista econômico.

– O Ferguson é um historiador bastante convencional no sentido da formação, tem uma tradição de análise dos principais pontos da história nos séculos 19 e 20, aos quais ele mais se dedicou – diz o historiador e pesquisador Saulo Goulart, doutor em História Cultural pela Unicamp e autor da aula preparatória sobre Ferguson disponibilizada para assinantes da Temporada 2021 – Ele tem um viés econômico, mas esta é uma ênfase um pouco artificial que se faz. O que acontece é que a gente olha mais para a economia hoje em dia. O Ferguson tenta equacionar como a sociedade vai mudando do ponto de vista sociocultural atrelado ao viés econômico, correlaciona camadas de acontecimentos, de fenômenos. Por exemplo, quando ele fala do Império Britânico moldar o mundo para favorecer o seu sustento comercial, principalmente a partir da Revolução Industrial, no século 19. Olha para o Império Britânico a partir de uma pergunta atual, “como viemos parar aqui?”, e localiza a grande mudança de estruturação da nossa sociedade capitalista. Faz essas perguntas e inevitavelmente entra na economia, que tem um impacto gigantesco a partir do século 19 como um determinante social. Não tem forma de pensar o mundo após a Revolução Industrial sem conceber a implantação de modelos econômicos.

Os livros, ensaios, entrevistas e séries de TV derivadas de seus livros, deram grande projeção midiática a Ferguson e fizeram dele uma voz influente no debate político. O foco de suas abordagens históricas – em “Civilização”, ele enumera as razões para que nações da Europa ocidental invertessem a mão da evolução científica, econômica, social e tecnológica nascida e desenvolvida no Oriente – e o seu profundo conhecimento, expresso com firmeza e não raro com comentários ácidos, trazem no arrasto controvérsias. Por suas posições e sua proximidade com figuras graúdas do Partido Republicano dos EUA – foi crítico da gestão do democrata Barack Obama –, assim como seu apoio ao Brexit, Ferguson costuma ser classificado como um pensador conservador, alinhado mais à direita do espectro político tradicional, em franca oposição à corrente historiográfica posicionada mais à esquerda e sintonizada com o pensamento marxista. Saulo Goulart, porém, destaca que esse espelhamento não é apropriado:

– Rotular um historiador em plena atividade é um reducionismo. O Ferguson, assim como o Yuval Harari e outros historiadores que têm feito sucesso, não só não é marxista, como nega a existência de um pensamento marxista atual. Acho correto, porque não existem hoje teóricos marxistas que sejam lidos e interpretados mundialmente ou que influenciem sistemas de governo, nem sequer na China. O Ferguson é descrito como conservador. E conservador no sentido britânico seria uma figura tradicional, não adepta a revoluções ou mudanças muito bruscas na política ou na economia, para salvaguardar a sociedade dos impactos que essas mudanças bruscas podem ter. É o pensamento básico do conservadorismo britânico. É muito diferente no Brasil, onde a gente não tem um conservadorismo no sentido político, mas sim um tradicionalismo que se diz conservador. Os britânicos têm uma escola política conservadora, daí o Ferguson tem esse recorte mais liberal. Eu diria que ele está entre o conservadorismo e o liberalismo clássico. Não é o que as pessoas costumam chamar, como um palavrão, um neoliberal.

Para Goulart, Ferguson não cabe nesta rotulagem simplista por, entre outras características, ser crítico tanto do sistema europeu quanto do americano de atrelar o lobby à prática política. E suas reservas quanto à China dizem respeito a um Estado autoritário à frente de uma prática capitalista que se mostra bastante agressiva:

– Eu prefiro falar que o Ferguson, na verdade, pega o pensamento republicano de uma maneira geral sob um viés clássico conservador, então é difícil encaixá-lo num rótulo. Ele tem preocupações que não são marxistas. O marxismo se preocupou em recortar a história a partir das contradições baseadas na ideia de luta de classes. Por outro lado, a historiografia durante muito tempo teve como ênfase focar na montagem social a partir das contradições, como os tempos vão se dando conforme a sociedade vai mostrando seus conflitos. O Ferguson traz um recorte inovador, olha para a história de maneira mais prática, a partir das perguntas mais imediatas. Por exemplo, por que os Estados Unidos estão passando por um processo de perda de hegemonia nas últimas décadas? Ele vai lá atrás buscar as respostas. É um movimento clássico dos historiadores, só que o Ferguson ignora as contradições, porque a ideia dele é responder como que a gente chegou a esse ponto, não propriamente dizer se algo é conflituoso ou não.

As análises acuradas e espirituosas de Ferguson também colaram nele o adjetivo “visionário”. Entre suas “previsões”, estão a grande crise que abalou a economia mundial em 2008, a já citada má influência das redes sociais e a ascensão da China como oponente dos EUA nas tensões econômicas e geopolíticas – nova Guerra Fria que, alerta ele, pode se tornar uma guerra quente diante do fator Taiwan. Em recente entrevista ao jornal espanhol El País, criticando trapalhadas que minam o início do governo Joe Biden, como a vexatória retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão, e enxergando um progressivo enfraquecimento político do atual presidente, Ferguson lançou um arriscado vaticínio para o pleito de 2024: “Trump voltará”.

– Eu diria que ele não é um visionário, mas um historiador do diagnóstico, por isso essa pergunta do presente para o passado. A inteligência do Ferguson é pegar esse diagnóstico e apontá-lo para o futuro. Mediante essa avaliação, quais os caminhos possíveis? O Yuval Harari também faz isso, mas de uma forma menos direta, menos focada na política e mais na questão sociocultural. É lógico que não podemos mistificar a coisa. É um jogo de erro e acerto. Com informação em tempo real, a possibilidade de diagnosticar o futuro é mais palpável. Muitos são alarmistas, mas o Ferguson não é, ele coloca a questão de forma bastante realista.

 

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