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Postado em mar. de 2021
Literatura | Cultura
21 ideias: Os debates para além da literatura de Salman Rushdie
"Os romancistas correm grande perigo diante do poder — pela descortesia de contar a verdade", afirma, a partir de sua própria experiência de vida, o escritor Salman Rushdie.
Salman Rushdie é um consagrado escritor britânico conhecido mundialmente pela publicação de Os Versos Satânicos, obra que causou polêmica na região islâmica e, inclusive, uma sentença de morte por parte de Aiatolá Khomeine, acusando o autor de ofender o profeta Maomé.
Outra obra que lhe rendeu prestigio e controvérsia foi o premiado e aclamado internacionalmente Os filhos da Meia-Noite, no qual o autor mistura fantasia e realidade para contar sobre o fim do colonialismo britânico. Desta vez, quem moveu processo contra Rushdie foi Indira Gandhi.
O autor virou um exemplo de escritor que é mais lembrado do que lido. Suas narrativas acabaram ficando obscurecidas, mas geraram profundos debates extraliterários e enriqueceram seu percurso. Em sua conferência no Fronteiras do Pensamento, levantou justamente a defesa do poder de permanência da literatura, bem como sua capacidade de resistir aos ataques. As controvérsias, afinal, acabam por eternizar romances clássicos em suas reflexões e críticas de determinados períodos das sociedades.
Combinando realismo mágico, ficção e história, as histórias de Salman Rushdie são permeadas de conexões entre Oriente e Ocidente. Foi vencedor dos Prêmios The Best of Bookers e Booker of Bookers, é membro da Academia Americana de Artes e Letras e da sociedade Real de Literatura Britânica, e é Comandante da Ordem das Letras e das Artes, alta honraria concedida pelo governo francês.
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As grandes ideias propostas por Rushdie, no palco do Fronteiras, podem ser lidas na obra 21 ideias do Fronteiras do Pensamento para compreender o mundo atual. O livro reúne textos de especialistas brasileiros explicando o pensamento dos conferencistas, seguidos da fala dos convidados, em excertos representativos das ideias que os colocaram como referências do nosso tempo.
Confira abaixo um excerto da fala de Salman Rushdie e acesse o site da Arquipélago Editorial para garantir sua cópia, também à venda nas principais livrarias! Além disso, você pode baixar a versão e-book recém lançada pelo Fronteiras do Pensamento clicando AQUI.
“Há uma ótima frase de Milan Kundera em seu grande romance O livro do riso e do esquecimento que resume tudo: ‘A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento’. Assim, com muita frequência em nosso tempo, os escritores, romancistas e poetas se transformaram na memória coletiva da raça humana, com o poder tentando distorcer e falsificar essa memória. O grande escritor italiano Italo Calvino tem uma frase em seu Se um viajante numa noite de inverno na qual diz: ‘Podemos avaliar o grau de respeito que um país dedica à literatura pelo tamanho do aparato que ele monta para reprimi-la’. Por essa medida, a União Soviética respeitava muitíssimo a literatura. A China, hoje, respeita muitíssimo a literatura. Os Estados Unidos, não muito, o que provavelmente é verdade. Esse é o nosso conflito atual.
Na minha vida, sem querer, acabei entrando em desacordo com uma ou outra pessoa poderosa. Indira Gandhi não gostou de certos aspectos de Os filhos da meia-noite e tentou me processar pelo livro. O processo não avançou porque, infelizmente, ela foi assassinada por seus guarda- -costas. O general Zia-ul-Haq, no Paquistão, teve algumas objeções quanto à representação de um general fictício do meu romance Vergonha porque o considerou baseado nele. Baniu o romance no Paquistão e, pouco depois, morreu num acidente de avião. Quanto à minha desavença com o aiatolá Khomeini, devo apenas salientar que um de nós dois está morto. Eliminar ditadores parece ser um serviço que consigo desempenhar. Vocês conhecem o ditado de que a caneta é mais poderosa do que a espada. Não mexam com os romancistas.
Falando sério, os romancistas correm grande perigo diante do poder — pela descortesia de contar a verdade. Uma das razões pelas quais isso acontece cada vez mais em nosso tempo é o fato de que o espaço entre os acontecimentos públicos e as vidas privadas encolheu. A política interfere nas nossas vidas privadas de um modo jamais visto. A carreira literária de Jane Austen coincidiu exatamente com a época das Guerras Napoleônicas, as guerras entre a Grã-Bretanha e o exército francês de Napoleão Bonaparte. No entanto, em toda a obra literária de Jane Austen, praticamente não há menção de que seu país está mergulhado num conflito gigantesco. O exército britânico de fato aparece, por vezes, nos romances de Jane Austen, mas sua função, basicamente, é abastecer as festas com soldados bonitões de uniforme vermelho. É uma função importante, sem dúvida. A batalha contra Napoleão, aparentemente, nem tanto. Não digo isso para criticar Jane Austen, mas para mostrar que o mundo descrito em seus livros é tão isolado em relação ao mundo dos acontecimentos históricos que ela não precisa se referir a eles. Ela pode descrever por inteiro as vidas de seus personagens, ela pode meditar profundamente sobre seus personagens e explicá-los sem que jamais precise mencionar assuntos de interesse público, porque esses assuntos simplesmente não interferem nas vidas das pessoas sobre as quais ela está falando. Esse não é mais o mundo em que vivemos.
Em nosso mundo atual, a política nos ataca todos os dias, gostemos ou não. No dia 11 de setembro de 2001, a história virou parte da vida privada de todos os nova-iorquinos. Passou a ser impossível ignorar que a política afeta nossas vidas privadas. Isso, acredito, obrigou vários dos melhores escritores do nosso tempo a encarar esses conflitos, mesmo que não tivessem muita vontade de encará-los. Porque os escritores escrevem sobre muitas outras coisas além da política.
Há uma questão estratégica para os escritores atuais: como lidar com os perigos da política? James Joyce recomendava, em seu tempo, a fórmula ‘silêncio, exílio e astúcia’. Voltaire recomendava que os escritores vivessem perto de uma fronteira internacional, para facilitar fugas. Infelizmente, essas soluções não funcionam mais. Os poderosos atravessam a fronteira internacional para nos pegar. Constatei isso pessoalmente. No entanto, continua ocorrendo que os melhores escritores se sentem obrigados a enfrentar as questões políticas de seus lugares no mundo, de seus lugares na história”.
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Salman Rushdie
Escritor