Catherine Millet responde: "Não podemos falar por todas as mulheres, como se fôssemos todas iguais"

Postado em jul. de 2018

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Catherine Millet responde: "Não podemos falar por todas as mulheres, como se fôssemos todas iguais"

Coautora do manifesto em oposição ao movimento #MeToo, Catherine Millet enfatiza a importância da diversidade de pensamento, mesmo na luta pelos direitos humanos.


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Coautora do Manifesto das Mulheres Francesas, criado em oposição ao movimento #MeToo, a escritora francesa Catherine Millet foi a conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo na noite desta quarta-feira (04).

A autora partiu de sua experiência pessoal para relatar ao público temas pertinentes e polêmicos presentes nesta verdadeira guerra cultural que, muitas vezes, tem início nas redes sociais – novas praças públicas da contemporaneidade – e passa a atingir dimensões perigosas quando replicada de forma imparcial pela imprensa.

Para Millet, um dos maiores riscos que esses movimentos representam para a democracia está no fato de que certas subjetividades identitárias pautam cada vez mais o comportamento de todos: “Não estamos mais numa situação de estado de direito, que garante as boas relações em uma sociedade impondo a mesma lei a todos os indivíduos, mas sim em uma situação oposta - vivemos em uma sociedade em que o ressentimento de alguns regula o comportamento de todos.”

Após sua fala, a escritora respondeu perguntas do público e da mediadora, a professora Isabelle Anchieta. Dentre elas, estava a Pergunta Braskem, enviada por nossos seguidores nos canais digitais. Confira abaixo:

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Impunidade é uma das palavras que mais define a justiça brasileira. Há estudos que indicam que, a cada 11min, uma mulher é estuprada no Brasil e apenas 1% dos agressores seria punido. Como fica o argumento do “entregar para a justiça” quando falamos de um sistema tão ineficiente quanto o brasileiro?

Catherine Millet: É claro que eu não conheço a situação aqui no Brasil, mas sei que usamos estatísticas dessas também na França e as destacamos dentro do mesmo tipo de argumento. É muito difícil julgar esse tipo de situação, porque quando eu falo sobre esse assunto, estou falando a partir de coisas que leio, de depoimentos e artigos escritos por advogados ou juristas. Os casos de estupro são extremamente difíceis de serem julgados e, frequentemente, é difícil chegar à verdade num caso de estupro. Isso não quer dizer que a justiça falhou, quer dizer que existe uma dificuldade em descobrir qual é a verdade, ou quem detém a verdade. É a acusadora ou o acusado?

É claro que existem casos que têm provas, mas existem muitos outros em que a verdade é muito difícil de ser determinada. Acho que não podemos nos precipitar condenando a justiça e dizendo que ela falha completamente nesse campo, porque este é um campo em que a verdade é muito difícil de ser provada.

Catherine Millet também respondeu outras perguntas do público presente no Teatro Santander. Veja abaixo as respostas da escritora sobre as contradições presentes na trajetória de Simone de Beauvoir, questões de gênero, sexualidade e o ciúme nos relacionamentos afetivos. 

O feminismo totalitário do #MeToo

"No fenômeno #MeToo, há um aspecto totalitário. Eu recebi muitas críticas por não fazer parte dessa relação de sororidade com as outras mulheres, como se todas nós tivéssemos que participar de um todo indivisível. Essa situação é muito agressiva e violenta.

Se pensarmos nas situações que vivemos há algumas décadas, o feminismo se diversificava e muitas formas de feminismo existiam naquele período. Em um certo momento, existiu o feminismo pró-sexo, que muito me interessou. Eram mulheres que se diziam feministas, mas que se apropriavam da produção de representação sexual para dar uma interpretação da perspectiva delas. Inclusive, muitas delas fizeram filmes pornográficos. Foi um tipo de feminismo em que muitos não estavam de acordo, mas pelo menos havia uma diversificação de ideias.

Não podemos pensar como se todas fôssemos iguais e estivéssemos na mesma situação. Eu tive que lembrar a muitas jovens parisienses ao meu redor que elas têm muitos privilégios e muita sorte de não estarem na mesma situação de mulheres que estão na Síria, por exemplo. Não podemos falar por todas as mulheres, como se fôssemos todas iguais."

Superexposição midiática

"Acho importante retomar a consciência de que a denúncia em praça pública era, simbolicamente, algo assassino. Hoje, vemos homens que perdem seus empregos e suas famílias em situações assim. E, em algumas vezes, eles são realmente culpados. Mas, o ato pelo qual eles são culpados não mereceria punições assim tão drásticas.

Por isso, destaco esse conceito de superexposição na mídia. Durante semanas e semanas, a mídia do mundo todo só falava do #MeToo e de assédio sexual. Tínhamos a impressão de que era a única coisa que acontecia e esquecemos dos conflitos que ocorrem no mundo e que são muito mais importantes."

Gênero e sexualidade

Primeiramente, precisamos distinguir entre gênero e sexualidade. Na minha opinião, existe algo irredutível, que é a diferença sexual. Nós nascemos com órgãos sexuais femininos ou nascemos com órgão sexuais masculinos. Temos também a questão dos andróginos e das pessoas que nascem sem essa distinção, mas, em geral, a humanidade é dividida por essa diferença sexual.

Podemos fazer todas as experiências de transexualidade possíveis. Os indivíduos vão mudar de gênero, mas não vão fazer com que essa diferença sexual desapareça. É algo que está lá, que nos atravessa e, de certo modo, faz com que sempre exista esta caixa de Pandora - algo de desconhecido para um homem quando ele está com uma mulher ou para a mulher quando ela está com um homem. Existe sempre algo do outro sexo que nos escapa completamente. O mito de Tirésias está lá para nos lembrar disso.   

As contradições em Simone de Beauvoir

Simone de Beauvoir é responsável por essa frase: “Não nascemos mulheres, nos tornamos mulheres.” Não sei até que ponto as feministas que a seguem conhecem os detalhes de sua vida, mas ela tinha um amante norte-americano. Com esse amante, Simone tinha um modo particular de se comportar e, em que em diversas vezes, se colocava em situações de submissão amorosa. Nessa relação, ela não era aquela feminista dura e rígida, como é a imagem que criamos dela.

Eu gosto muito da Simone de Beauvoir, justamente por ela ter sido capaz de ter escrito um livro importantíssimo para defender a causa das mulheres e, ao mesmo tempo, ter uma vida livre em relação ao que escreveu. Ela teve um comportamento de mulher ou amante totalmente tradicional – o que sempre me tocou e me marcou.

A revista Les Temps Modernes, fundada por Jean-Paul Sartre, me pediu há alguns anos que eu escrevesse um artigo em comemoração ao aniversário de Simone de Beauvoir. No final deste artigo, eu incluí uma citação com relação às cartas que ela trocava com seu amante americano, em que ela dizia: “Você conhece Casanova? Eis um homem que entende as mulheres.” Aí está a sua contradição. Se a gente disser isso para as feministas que a seguem, muitas delas não acreditariam. 

Ciúmes

Nós somos seres contraditórios e, às vezes, conhecemos nossas contradições, mas, noutras vezes, não as conhecemos. É por isso que existe esse problema do inconsciente.

A história que eu conto em meu livro fala sobre quando eu me descobri, de uma hora para outra, como ciumenta. Se tivessem me perguntado algum tempo antes em relação à minha vida e à minha liberdade sexual, se tivessem me perguntado sobre ciúmes, eu teria respondido que participei de uma geração que desprezava o ciúme, uma geração que fez a revolução sexual. Mas, de uma hora para outra, esse ciúme apareceu em mim sem que eu pudesse entender o que estava acontecendo.

Escrever o livro me ajudou a entender que esse ciúme vinha de um impulso extremamente primitivo, totalmente incontrolável. É por isso que eu consigo ver o que se passa pela cabeça dos homens que têm um comportamento descontrolado, porque eles respondem a impulsos e impulsos são a coisa mais difícil de ser controlada. Eles vêm de um espaço em nosso inconsciente que ignorávamos até então. Não estamos preparados apara dominá-lo, mas há todo um trabalho a ser feito. Se eu tivesse sido prisioneira desse ciúme, se eu tivesse aprisionado o homem com quem eu vivo dentro desse ciúme, teria sido um inferno. Eu consegui voltar para terapia e consegui lidar com esse ciúme.

Somos atravessados por contradições e, mais uma vez, é a psicanálise que nos demonstra isso. Há desejos ou coisas que gostaríamos que acontecesse e a gente acha que esqueceu isso, mas não esqueceu. De uma hora para outra, eles voltam com toda força e tomam a pessoa que somos e a vida que construímos. Essa falta de conhecimento é, de alguma forma, a negação do inconsciente. 

O olhar do outro

selfie seria algo que nos aprisionaria em nós mesmos. Na selfie, nem existe a intervenção do terceiro, que teria a câmera de fotografia na mão e escolheria o enquadramento. Somos nós que escolhemos o enquadramento.

Essa ideia de passar pelo outro para se compreender melhor é uma ideia que vem de Marcel Proust. Ele diz que é uma construção que criamos a partir do olhar dos outros. Pode ter efeitos negativos ou positivos, dependendo do que fizermos com isso. É claro que nos entendemos melhor através do olhar do outro, porque isso quer dizer simplesmente que estamos confrontando o outro.

Se o homem que te ama diz que a roupa que você está usando não está bonita ou que não está te valorizando, você fica frustrada. Você vai levar em consideração essa crítica e buscar escolher da próxima vez uma roupa diferente daquela que ele disse que não ficava bem com seu biotipo. Isso nos leva a nos conhecer melhor e a confrontar o outro, o que, na minha opinião, é algo que nos alimenta. Esse olhar do outro faz você sair da sua subjetividade – permite que você se veja como se você fosse outra pessoa. Acho que é importante sair da sua própria subjetividade para se julgar e analisar. 

#MeToo e o caso Weinstein

Neste caso específico do produtor americano Harvey Weinstein, vou provocar um pouco com o meu comentário. Eu acho que essas jovens que descobriram um tempo depois que tinham sido enganadas ao ir para o quarto de hotel ou foram ingênuas (e nesse campo do cinema é muito difícil de acreditar que elas sejam tão ingênuas) ou foi má fé.

A situação delas não é a mesma de uma mulher que trabalha como caixa de uma grande loja e um dia o seu patrão chega e faz chantagem e, se ela não ceder à chantagem, ela pode perder o seu trabalho. Essa mulher sim está numa situação realmente difícil. Mais uma vez, acho que é importante distinguir os dois casos.

Juliette Binoche, uma grande atriz francesa, logo no início do #MeToo foi indagada sobre essa situação que aconteceu com as mulheres americanas (que acusaram o produtor de abuso sexual). Ela respondeu o seguinte: “Sim. Já aconteceu comigo. Eu sabia que perderia a oportunidade de interpretar aquele determinado papel e eu não cedi.”

Acho que as mulheres precisam ser suficientemente fortes para dizer não. E é claro que uma mulher que é atriz de cinema tem os recursos necessários para dizer não. O que é totalmente diferente da situação de quem trabalha como caixa em uma grande loja. Não podemos confundir as coisas. Eu digo isso, porque acho chocante o comportamento dessas atrizes – o que não significa que eu tenha empatia em relação ao Weinstein. Ele não me parece simpático ou agradável.

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Catherine Millet

Catherine Millet

Crítica de arte e escritora

Crítica de arte e escritora francesa, é fundadora da Art Press.
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